sábado, 25 de setembro de 2010

A adoção

Entrevista e até visita domiciliar para checar as condições da família. Esse é o procedimento que um candidato a adotar um cachorro ou gato deve se submeter em São Carlos.

Fonte: Folha de São Paulo/Ribeirão

Solitário, Claustrófobo, ocupava o tempo como era possível, considerando que os ganhos não permitiam gastos além de uma prosaica cerveja nos finais de semana. Uma palavra cruzada que comprava a cada quinze dias – às vezes demorava mais, pois só comprava outra quando respondia tudo, o que nem sempre sua inteligência mediana ajudava – e que mais? Mais nada. Casa, trabalho, trabalho, casa. Assistia tv. Mas, conservador, achava que a televisão era um antro de porcaria. Só ensinava o que não prestava.
O apartamento era pequeno, assim mesmo, havia dias que parecia tão grande. Houve tempo em que pensou arrumar uma companheira, mas umas decepções amorosas num passado distante o deixaram amedrontado. Mulher é bicho perigoso, dizia. Você dá o pé e quando se espanta... Ele não completava a frase, talvez não soubesse o ditado ou não atinasse sobre o que seria mais importante do que o pé que dava.
Amigos não tinha. Sim, havia os colegas de trabalho, com quem trocava poucas palavras e só. Achava-se deslocado. Não sabia contar piadas. Não tinha experiências com mulheres para contar. Não torcia por time nenhum, sequer sabia jogar futebol. Uma bola em seu pé era um estorvo. Claustrófobo levava uma vida pra lá de besta e mesmo para ele aquilo começava incomodar.
Num desses dias insignificantes, estava na fila do supermercado e viu um cartaz: Adote um animal. A imagem mostrava um cachorro com aquela cara de cão abandonado. Sentado, a orelha meio murcha para trás. O olhar oblíquo em direção ao suposto adotante. Só faltava falar. Aquilo lhe comoveu. Ao mesmo tempo percebeu ali o fim de sua vida solitária. Anotou telefone e endereço.
Dia seguinte estava Claustrófobo em sua melhor roupa à porta do abrigo municipal. Entrou meio acanhado. Aquilo era um grande passo. Um compromisso com alguém, fosse cachorro era o de menos. Uma senhora com cara mal dormida veio lhe atender. Ele se atropelou na fala. Vim adotar um cachorro. Bom dia, não é? Disse a mulher ralhando com sua falta de modos. Ele corrigiu-se: bom dia. Posso ver o cachorro que quero adotar. Calma aí, meu senhor. Não é assim, não. Tem que responder a uma entrevista. Aquilo era surpreendente para Claustrófobo. Entrevista? Precisamos saber de suas intenções com o animal. Intenções? O senhor vai dar carinho, atenção, levar no veterinário quando precisar, alimentar adequadamente? Era muita pergunta de uma vez.
Então, está pronto para responder? Inquiriu a mulher, desafiadora. Claustrófobo disse um sim hesitante. Nome. Idade. Endereço. Telefone. Ganho. Como assim? Empacou Claustrófobo. O senhor tem que ter dinheiro para bancar o animal. Olhe, eu sei criar um bicho. Bicho? É assim que o senhor trata o animalzinho? Desculpe, mas como devo chamar? Primeiro o senhor deve dar um nome ao animal. Mas ainda não conheço qual vou adotar. Que seja.
Posso ver agora. Ver o quê? O cachorro. Ainda não terminamos com o senhor. E tome pergunta. Meia hora depois, Claustrófobo já não aguentava mais. Minha senhora, eu só quero adotar um cachorro para me fazer companhia. Isso aqui é uma inquisição. Ah, então o senhor confessa? Confessa o quê? Que quer o animal apenas para usá-lo. Aqui nós defendemos o interesse do animal. Um animal não é um uma coisa, senhor Claustrófobo! E as necessidades do animal não contam? Não é adotar por adotar. Não é só para tapar sua solidão e a solidão do cão abandonado? Prometo que ajudarei quando ele parecer entediado, triste, deprimido, está bem? Estamos nos entendendo, senhor Claustrófobo.
Terminamos? Quase. E dê-se por satisfeito, porque ainda havia o teste psicológico, mas hoje o psicólogo não virá, foi mordido por um cachorro. Uma última pergunta. Que cão o senhor prefere? Não sei. O que a senhora sugere? No momento só tem um pitbull disponível. Então porque pergunta o que prefiro se não posso escolher? É a norma. Leva? Não obrigado, acho que vou ficar com a catita que vive lá em casa.

domingo, 19 de setembro de 2010

Vida de cachorro não é mole

Um cachorro foi aposentado de seu posto de cão de guarda depois de dormir durante o único assalto ao pub onde trabalhou por 12 anos.
Os marginais levaram milhares de libras em álcool e dinheiro vivo enquanto Taz, o cão, dormia num canto do bar.

Fonte: G1, em São Paulo 15/09/2010
Cheguei do culto às sete da noite. Ando devagar e faço o trajeto, ida e volta, a pé. Veja você, depois de anos e anos trabalhando não tenho direito a um transporte. Sinceramente não entendo esta mania das pessoas de mudarem os nomes das coisas para amenizar seus sentidos. A explicação é que dizer certas coisas de forma direta pode ferir suscetibilidades. A velhice, por exemplo, da qual faço parte, chamam de melhor idade. Como é que pode ser melhor idade se ninguém quer ficar velho? Fazem de tudo para parecerem jovens e aí querem nos enganar com palavrório inútil.
É a velhice, desculpem. Começo uma história e emendo uma coisa na outra e daqui a pouco nem sei do que falava. Onde estava mesmo? Ah, sim, que cheguei às sete da noite no bar. Não tinha dito que era no bar? Esqueci. Acho bom explicar esta história de alguém que sai da igreja e vai direto para um bar. My job, diriam os americanos. Eu vigio o estabelecimento. Ah, também esqueci de dizer meu nome. Eu me chamo Taz. Não, não sou um diabo da Tasmânia.
Sou cachorro, com muito orgulho. O que faz um cachorro num culto? E cachorro não tem direito a falar com o Criador? Tem direito, sim, senhor. Também sou criatura. O clérigo não é um cachorro, é uma pastora. Não, não, não, é pastora alemã, é humana. Ouvi dizer que a igreja estava meio em baixa. Que houve uma reclamação de alguns párocos. Que reivindicaram a presença de seus melhores amigos ou não iriam mais à celebração. A pastora não teve jeito, agora até latir pode, dizem que é um canto sacro. Como é que eles sabem? Eu mesmo mais reclamo da liturgia e da pregação do que outra coisa.
Meu chefe não gosta de igreja, nem com liberação para os cachorros. E olha que agora tem o culto semanal: “Celebração da pata do animal de estimação”. Nossa relação é, digamos, profissional, donde não há muito espaço paras estas afetividades: lambidas de mãos, saltitos ao redor. Não gosto de fazer nem uma nem outra coisa.
Outra vez desviei do tema. Permita-me que acabe a história toda, por favor. Sem mais perguntas. Trabalhei doze longos anos como vigia. Isso dá em idade humana 64 anos. Quando iniciei tinha dois anos, um jovem de 26 anos apenas, se fosse humano. O tempo cobra seu preço. Estou meio cego e surdo. Será que ele não via que eu precisava me aposentar? Viu, sim. Acontece que não queria despesas com funcionário novo. Come mais. Exige passeios para se manter em forma.
Quando dei por mim, estava despedido, no meio da rua. Então o que sei é que noite destas, entraram no bar reviraram tudo. Roubaram quase todas as garrafas. Uísque doze anos e mais não ficou um pra remédio. Vinhos. As melhores vodcas. Cachaças brasileiras das melhores. Um destrambelho só. De quebra, fizeram um raspa no caixa. Onde eu estava? No bar. Dormindo. Não tenho do que me envergonhar. Sou velho. Fui acordado por um cutucão do bico do sapato do dono do bar. Até hoje estou de costela dolorida.
A ingratidão humana não tem limite. E quantas vezes não defendi com perigo de vida aquela espelunca com a qual ele alimentou a família toda? Isso não conta? E não tinha essa de feriado, dia santo, pois justamente nestes dias havia mais gente no bar. Nunca saí da linha. Quer dizer, mordi um bêbado que me pisou o rabo. Em minha defesa digo. Ele o fez de propósito.
Acho que vou me candidatar para vigiar a igreja. Com minha experiência posso guardar até a porta do Éden. Ah, já tem? Tudo bem, eu acompanho o anjo.