sábado, 22 de agosto de 2009

O atraso

O diabo é o quando, sabe? Minha vida tem um delay permanente. Devo esperar o quando na estação. Vejo a fumaça do trem antes da curva, mas porque nunca chega? É como se atrás do pano alguém brincasse com o rewind. Giros rápidos do botão para frente e para trás e se ri, acho. Por isso vejo sempre a mesma cena. Meu rosto agora carrega o desenho de um destino, está escrito nos vincos das tristezas recorrentes. Mudará?
Serei Estragon ou Vladimir, abrigado sob uma árvore pelada nos confins de um vazio a espera de um Godot imaginário? É isto! Espero o quando. Que quando é este, perguntas? Uns chamam de esperança, eu não sei, chamo de quando. Algo entre a esperança e o real. O quando é filho roto dos planos. Plano A, plano B. Não, quase nunca tenho saída de emergência, devo aguentar o impacto de frente. Depois de um tempo um se acostuma.
Acenou que esperasse. Aqui mesmo, sim. Se me escapa o dia de sua chegada. Não sei o que trará. Enfado-me de ter que esperar, mas que posso fazer? Pediu que aguardasse como sem falta. Talvez diga coisas importantes. Já disse ontem por um de seus serviçais que possivelmente virá ao fim do dia. Foi assim trasonteontem. Melhor esperar, penso, pois se não o faço ele pode chegar e perderei o encontro. Que mais farei?
A pressa me consome, é um bicho de pé que não para de fazer comichão. Tudo se dá na dimensão bidimensional, quisera fosse cúbica minha espera. E o tempo dentro dela, há que ver-lhe escorrer grão a grão até ser entortado pela gravidade da expectativa da espera.
Às vezes quero ser Esaú. Quero o guisado de lentilhas. Ele foi enganado. Quero-o pelo menos uma vez, de caso pensado, sim, por que não? Estou cansado da míngua. Enfarado da vacuidade da espera. Estou farto de catar migalhas. Comerei com escolhas. Arre com tanto pudor!
O quando não vem, vem? Não sei. O que era antes uma curva tornou-se uma reta monótona que se afunila no horizonte azulado. A curva ainda enganava, dava a sensação de algo perto, do inesperado que logo surgirá. Do fim, onde os trilhos se encontram, subo os olhos para o céu e encontro nuvens baças, são como algodão esfarrapado. Estas não prometem chuva, sei.
Queria ver Deus e perguntar. Por que o quando não vem? Basta falar, dizem. Balbucio. Pergunto baixo, não sei se quero que ouça. Quero a morte pelo fulgor da sua luz, até já estou descalço no chão sagrado, só não direi as palavras sagradas por desgastadas que estão na minha boca.
O sol é duro como pedra de cantaria. Tento me abrigar na espera, mas vejo um verme que sobe do chão na planta adormecente, ele a matará, eu sei. O vento abrasador me desespera e ele me confronta e tudo acaba num impasse. Sou todo raiva e frustração, como vou entender de padecimentos da ignorância alheia e de misericórdia?
É como antes lhes disse: agora nem palha lhes darei. Que a busquem onde seja. E não haverá redução na fabricação de tijolos.
Agora tenho fome, onde está o guisado de lentilhas? Rejeito o silêncio e a espera, estou cansado de os suportar. Sou carne, oras. Não sou etéreo, tenho fome e desejos que escoiceiam minha carne. Resisto. E o quando, virá? Quem sabe? A curva. Não há mais curva, já disse.
Meu ouvido escorreito perscruta o vento. Ouço ecos que vem de longe de orações de outros. Por que clamam tão alto? Não dizem que não é pelo muito falar? Mas se pouco falo também não sou atendido. Mas é que já não sei como falar as palavras sagradas que movem montanhas. Atira-te daqui para o mar, assim de simples. A montanha desdenha de mim.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O caso Rosangela Justino – uma análise


Afinal, como era esperado, a psicóloga Rosangela Justino foi punida com censura pública pelo Conselho Federal de Psicologia (dia 31/07). O placar entre os membros votantes foi de nove a zero. O presidente da entidade, Humberto Verona, ainda advertiu que a punida será fiscalizada e, caso persista em sua prática, “arcará com as consequências”, uma clara ameaça de cassação do registro profissional.

O evento chamou a atenção da mídia e, claro, dos psicólogos, militância gay e seus blogs em posts raivosos. Nas salas de aula, professores e alunos discutiram o tema. E o que percebo? A maioria das pessoas não leu com o cuidado devido o que foi publicado. Em quase todos os textos e discussões que presenciei havia um espanto e, naturalmente, uma atitude hostil a Rosangela.

Percorro as reportagens nos grandes meios de comunicação e não houve uma só que tenha sido imparcial, ética e não tendenciosa. A situação chegou ao cúmulo de uma repórter da Folha se disfarçar como cliente, que supostamente desejava mudar sua orientação sexual lésbica. A reportagem foi publicada em 14 de julho. Não bastava ouvir Rosângela e questioná-la de frente, havia que armar uma farsa para deixá-la ainda em pior situação do que as que a própria se meteu.

Sim, Rosangela cometeu erros graves, em minha opinião. Fez afirmações que, para além de sua prática – como disse, de 20 anos – não autorizaria afirmar de forma cabal as razões da homossexualidade. Descuidou-se e comparou a militância gay ao nazismo. Embora os mais exaltados deste movimento tenham atitudes tão fanáticas quanto a acusam.

Rosângela concentrou-se em defender posições questionáveis enquanto o que motivou sua punição foi deixado de lado, a saber, a resolução caduca e questionável do CFP. O que está em jogo é a prática da psicologia, a relação psicólogo-consulente, o protagonismo deste consulente no que diz respeito à terapia e seu direito de escolha a respeito do que lhe causa sofrimento, e ainda o que seja cura, tratamento ou assistência psicoterápica na homossexualidade quando esta questão é colocada pelo interessado.

Rosangela foi inábil no trato com jornalistas que claramente desejavam pegá-la no contrapé. Uma das perguntas de Veja é um bom exemplo. “Há estudos que mostram que ser gay não é escolha, é uma questão constitutiva da sexualidade. A senhora acha mesmo possível mudar essa condição?” Bem, que estudos, que teóricos, de onde o jornalista sacou esta certeza? O repórter não disse e nem pretendia.

Neste assunto, há tantos estudos e razões que explicam as causas – que é sempre multifatorial – da homossexualidade quantos gays existem. Rosangela, por sua vez, fez afirmações categóricas que estão longe de ser, sozinhas, a causa da homossexualidade masculina ou feminina. Do mesmo modo, os defensores da realidade imutável gay, afirmam, como perguntou o repórter de Veja: “Esse alívio não seria maior se a senhora as ajudasse a aceitar sua condição sexual?” Esta é uma falácia aceita hoje como dogma que fere a prática ética do psicólogo e afronta ao consulente.

Não é verdade que a sexualidade humana seja preto e branco, especialmente no que toca à homossexualidade. Não fosse isso, a simples rejeição social ou familiar seria suficiente para explicar o sofrimento de quem vivencia a condição gay. Muitas pessoas não tiveram qualquer rejeição e assim mesmo sofrem. O mais honesto é considerar que cada pessoa tem uma história muito particular – fisiológica, mental, cultural e social – e que é preciso ser visto a partir desta perspectiva.

Rosangela também afirma que a homossexualidade é um distúrbio psicológico, no que exorbita daquilo que diz a ciência da psicologia. Ainda que em tempos recentes, era assim que se pensava.  Nem todos os homossexuais têm sofrimento por sua condição. Por outro lado, vivenciar uma não aceitação da sexualidade pode sim, produzir distúrbios graves. O psicólogo, entretanto, não tem a função nem de curar a homossexualidade, tampouco, como defendem muitos, fazer com que a pessoa aceite aquilo do qual não está certa. O percurso é conjunto, mas as decisões, a partir da construção de uma congruência própria, a partir de seus insights, é a pessoa do consulente que constrói.

Por fim, Rosangela deu conotação religiosa às suas ações, embora muito do que lhe atribuem não seja verdadeiro. Não que um psicólogo não possa tratar da questão da espiritualidade, porém, lhe é vedado indicar sua fé como parte de um processo terapêutico, ainda que, sim, existem vários estudos que comprovam, práticas religiosas são importantes para o processo de saúde mental e psicológica, principalmente quando isto se dá num ambiente de acolhimento, amizade e cuidado com o que sofre.

A forma messiânica como Rosangela coloca suas posições religiosas no que tange à terapia com homossexuais, denotam outra questão: a intervenção do religioso no campo psicológico como parte de um processo terapêutico. Os dois se tornam inócuos, perde o cliente que não será beneficiado e, no que toca à religião, esta é uma escolha do consulente.

O psicólogo, considero, não fere a ética se, no particular, cultiva sua espiritualidade para ter o máximo de empatia que puder com aquele que lhe busca, e lhe ser tão útil e canal de cura quanto lhe seja possível. Já aí há um milagre, pode-se dizer, ser capaz de entender o outro e lhe ser bênção. Não é pouca coisa.

OBS.: A foto da psicóloga Rosangela Justino foi copiada da internete onde consta em inúmeros sites, reportagens e blogs.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Por que Deus me poupou apodrecível?

Releio Adélia Prado. Revejo as marcas que deixei de outras leituras. Chão pisado, rasgos em cascas de árvore para eu retornar aos insihts que me descobriram. Uma palavra solta num entre parágrafo. Um sublinhado. Uma circuitação. Deparo-me com lembranças de pensados que me despertaram e descubro outras frases que terminam por me fazer pensar outras coisas de mim. O estado d’alma era outro de agora.

Numa dessas andanças deparo-me com esta frase: “Por que Deus me poupou apodrecível?” Embatuquei diante dela. Não me vem Paulo em sua incrível tristeza e paz quando clamou três vezes por uma cura de um mal que deu nó em muitos teólogos e ainda mais em enfronhados que afirmam certezas cristalinas como se fossem oráculos délficos. Que mais dá que tipo de mal padecia se não havia cura? É que gostamos de dar nomes aos bois. Sensação besta de poder. Com nomes domesticamos doença, tristeza, gente e bicho.

Como se fosse uma destas coincidências horoscópicas havia sido perguntado se, quando morresse, queria ser enterrado ou cremado. Minha mulher queria registrar isso para o caso de. Não, estávamos no carro, foi sem mais que a história saiu. Dei de ombros. Mas confesso que tenho uma queda pela cremação. Não para ficar com as cinzas num potinho escondidas num armário o que acho tétrico – vê, que palavra sonora? –, mas para ser espalhado numa floresta, só assim teria graça. Eu me divirto com a idéia de dar um quebra-cabeça para Deus no dia da ressurreição. Ele tendo que me inteirar, molécula a molécula, procurando entre árvores e arbustos. Ou ele simplesmente vai ordenar que eu apareça?

Imagino Ele orientando aos anjos. As moléculas dele tem uma brilhância esverdeada e eu sendo catado e colocado em copos-de-leite. Tomara que eu não vire célula de raiz, quero ser célula de folha pra tomar ar e banho de sol. Já sei, já sei. Não será assim. Vai ordenar aos mares, terra e sei lá mais o quê que devolvam as pessoas. Assim, sem mais. Onde está a poesia nisso?

Lembro mesmo do profeta Habacuque que vê o mal e ouve palavras divinas de desastre, mas ainda que as plantas neguem seu fruto, ainda que não haja gado no curral, o campo esturricado nada produza, ele se alegrará em Deus e exultará no Senhor de sua salvação. Eu, por mim, ainda não consegui sair da torre da espera, daí o eu ser apodrecível: olhos fracos, ouvidos moucos.

Mas, se penso bem, não fosse eu apodrecível, ninguém me aguentaria. Sê-lo me deixa de crista baixa e toda vez que me rebelo, lá estalam dores da angústia de ser e comichões do tempo roçando meu corpo que se desgasta.

domingo, 16 de agosto de 2009

Sem diabo não tem negócio

Réus num processo que investiga lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, os líderes da Igreja Universal do Reino de Deus têm dito, por meio de advogados, que suas contas já foram fiscalizadas e aprovadas pela Receita Federal.
No entanto, a investigação mais ampla já feita pelo fisco nas finanças da igreja e de seus líderes indica o contrário.
Fonte: Folha

Neco, meu caro, estou em vias de resolver minha vida de uma vez por todas. Vou fundar uma igreja. E tu lá entende de igreja? Entender, entender, eu não entendo, mas isso é só detalhe. Peguei emprestado uns cobres e fiz um curso de pastor pela internete. Tu precisa ver Neco, a apostila ensina tudinho. Semana que vem chega a carteirinha. De lambuja, ganhei a inscrição na Ordem Mundial Internacional da Glória dos Profissionais do Ministério Sagrado. Coisa fina. Isso dá um upgrade danado na carreira, me disseram.

Então tu serás o pastor Eliorefe? Não, mudei de nome, que nem os patriarcas bíblicos. É que o pessoal disse que meu nome não é muito artístico. Serei Pastor Ronildo. Começo como pastor e subo de grau até potestade. Já tenho até cartaz, ó. E aí, gostou? É diferente. Comprei um dois terninhos pra impressionar. Cabelo só no gel, é como fui orientado. Sabe como é, o cara tem que passar a idéia de vencedor, andar na estica.

E pregar Eli..., quero dizer, Ronildo, tu sabe? Moleza, meu filho. Eles me passaram um vídeo de um camelô que é o bicho. O cara vende geladeira para esquimó. Só tenho que meter uns palavreado que tô treinando. Tipo o quê? Tá amarrado! Toma posse da bênção, meu irmão! Tua vitória já está determinada! Que vitória? Como assim? Tu disse: “tua vitória já está determinada”. Ô Neco, não interessa, qualquer vitória.

O segredo é caprichar na entonação pro povo acreditar. E Aleluia e Glória, não diz não? Até que diz, mas o negócio mesmo é vitória, casa de 5 quartos, carrão, não é esse negócio de bolsa família. O povo quer é coisa boa. Tem que vender produto de qualidade, se não o povo dispersa, a concorrência ta feia neste mercado, meu filho.


Vender religião é fácil, necessidade velha, nunca sai de moda e tem sempre um monte de gente desesperada. O povo é doido por um milagre. Mas tu não entrega a mercadoria. Ô Neco, tá me estranhando? Isso é coisa do abstrato, coisa do outro mundo, não precisa explicar. É só dizer que o sujeito que não recebe é porque não tem fé. Azar o dele. Ele vai passar um tempão tentando ter a fé certa e enquanto isso investe em nossa obrinha. Fez mímica com o polegar e o indicador.

E como é que vai se chamar tua igreja? Tô com umas ideias aí. Tem que ter alguma coisa com mundial, internacional, milagre, poder, essas coisas. É, tô vendo que tu tá animado. E não havera de tá? Negócio melhor não há. Não paga imposto, não precisa de muito estudo, só jeito. Igual só sendo torneiro mecânico e virar presidente. Riram.

E o diabo? Que que tem? O capiroto, o fute, o coisa ruim... Não tô te entendendo. E se ele aparecer? Ah, rapaz, é até melhor, fiz especialização em desencapetamento total. Pra começar, o curso indica um pessoal que faz cego, aleijado, endemoninhado. A igreja tem que mostrar poder e não tem melhor saco de pancada do que o diabo. Tu sabe, né, falar dos macumbeiros dá confusão. Um pessoal que já está há mais tempo no mercado – tão podres de ricos – dizem que sem o diabo não tem negócio.