Releio Adélia Prado. Revejo as marcas que deixei de outras leituras. Chão pisado, rasgos em cascas de árvore para eu retornar aos insihts que me descobriram. Uma palavra solta num entre parágrafo. Um sublinhado. Uma circuitação. Deparo-me com lembranças de pensados que me despertaram e descubro outras frases que terminam por me fazer pensar outras coisas de mim. O estado d’alma era outro de agora.
Numa dessas andanças deparo-me com esta frase: “Por que Deus me poupou apodrecível?” Embatuquei diante dela. Não me vem Paulo em sua incrível tristeza e paz quando clamou três vezes por uma cura de um mal que deu nó em muitos teólogos e ainda mais em enfronhados que afirmam certezas cristalinas como se fossem oráculos délficos. Que mais dá que tipo de mal padecia se não havia cura? É que gostamos de dar nomes aos bois. Sensação besta de poder. Com nomes domesticamos doença, tristeza, gente e bicho.
Como se fosse uma destas coincidências horoscópicas havia sido perguntado se, quando morresse, queria ser enterrado ou cremado. Minha mulher queria registrar isso para o caso de. Não, estávamos no carro, foi sem mais que a história saiu. Dei de ombros. Mas confesso que tenho uma queda pela cremação. Não para ficar com as cinzas num potinho escondidas num armário o que acho tétrico – vê, que palavra sonora? –, mas para ser espalhado numa floresta, só assim teria graça. Eu me divirto com a idéia de dar um quebra-cabeça para Deus no dia da ressurreição. Ele tendo que me inteirar, molécula a molécula, procurando entre árvores e arbustos. Ou ele simplesmente vai ordenar que eu apareça?
Imagino Ele orientando aos anjos. As moléculas dele tem uma brilhância esverdeada e eu sendo catado e colocado em copos-de-leite. Tomara que eu não vire célula de raiz, quero ser célula de folha pra tomar ar e banho de sol. Já sei, já sei. Não será assim. Vai ordenar aos mares, terra e sei lá mais o quê que devolvam as pessoas. Assim, sem mais. Onde está a poesia nisso?
Lembro mesmo do profeta Habacuque que vê o mal e ouve palavras divinas de desastre, mas ainda que as plantas neguem seu fruto, ainda que não haja gado no curral, o campo esturricado nada produza, ele se alegrará em Deus e exultará no Senhor de sua salvação. Eu, por mim, ainda não consegui sair da torre da espera, daí o eu ser apodrecível: olhos fracos, ouvidos moucos.
Mas, se penso bem, não fosse eu apodrecível, ninguém me aguentaria. Sê-lo me deixa de crista baixa e toda vez que me rebelo, lá estalam dores da angústia de ser e comichões do tempo roçando meu corpo que se desgasta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário