sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Surpreenda-me, Deus.

Aqui estou eu olhando esta ficção temporal que chamamos 2011 a se estender diante de mim. Também tenho meus planinhos, um ou dois sonhos que, ora mais claros ora menos, antevejo sua realização. Sei, entretanto, que a vida indomável caminhará por caminhos que agora sequer imagino. Acalento-me com referenciais mais ou menos estáveis como quem tateia a casa conhecida na escuridão. Sei que no final, como no ano que passou, terei motivos de gratidão até pelo que não esperei.

A terra fez sua translação e então voltou ao ponto de partida. Este movimento, associado a sua rotação, nos ajuda a contar a grandeza física chamada tempo. Com este moto perpétuo circular ou nem tanto, criamos fórmulas para registrar o tempo e chamamos a uma parte dele de dia, ao intermediário, pouco mais que um ciclo lunar, chamamos mês e ao maior deles, denominamos ano. Associamos a estes nomes e números a memória, os planos, as esperanças, expectativas e nos lançamos num rodopiar espaço afora que está dentro de outros infindáveis rodopios cósmicos. 

Domado o tempo, passamos às tarefas de registro. Quanto olhamos para trás, chamamos história. Se olhamos para frente, dizemos futuro. Ao presente apelidamos de rotina, não raras vezes, tédio. Isso porque esta passagem de tempo, grãozinhos de areia que caem um após o outro, tantas vezes sem significação – é duro dar significado permanente às coisas sem que façamos, quase de forma ininterrupta, avaliações, medidas, críticas – é uma maçada. Rápido caímos no ramerrame da repetição dos atos, palavras e relações. Não me entendam mal, uma boa e velha rotina faz um bem danado. Menos quando estamos nela.

Mas no início de outro ciclo temos a sensação de que tudo é ou será novo e nos animamos com isso. Somos contagiados pelos demais, companheiros de giro, que se lançam a fazer projetos sofregamente e nos cobram se não os seguimos. Logo estamos fazendo planos, estabelecendo metas, renovando promessas antes não cumpridas, mas que agora, por artes deste estado de sentimento, há certeza cristalina, serão realizadas. Em algum lugar em nós, uma leve desconfiança nos diz que procastinaremos até que demos outra volta e, num suposto novo ponto de partida, repitamos tudo outra vez.

O tempo escorre continuamente e ao dar nomes a partes dele, esquartejá-lo em pedaços grandes como o faria Jack e depois em menores até proporções atômicas, temos convicção, nós o dominamos. Mas diante do espelho ou pior ainda, no espelho do rosto do outro que nos acompanhou a história efêmera, desacostumados com suas rugas, vincos, cabelos brancos, pele flácida, espantamo-nos horrorizados: Meu Deus, faz 40 anos! Como passou rápido!

Nós, provisórios, precisamos do que é permanente. Então, acima de tudo, apego-me a Deus que, diz a Escritura, é imutável. Mas Ele costuma ser arredio aos nossos scripts. Desculpem, tenho ojeriza aos pedidos detalhados como quem faz lista de supermercado e o repassa ao estafeta para adquiri-lo para nós. Já sei, já sei, sem explicações, isto caso apareça alguém que me queira fazer atravessar a rua por me supor cego, só porque me vê parado e de óculos escuros quererá fazer sua boa ação como bom cristão. 

Lembro-me agora do filme Ratatouille. Anton Ego, o crítico implacável, capaz de destruir a fama de um restaurante com apenas uma linha escrita, visita o restaurante de que todos estão falando. Uma nova direção, supostamente melhor ainda que o antigo chef Gusteau. Ao comer a comidinha banal, dos pobres, o tal ratatouille, é capturado por lembranças de uma infância difícil. Aquela comida lhe transporta ao amor da mãe dedicada e protetora. Muitas reviravoltas depois, num recomeço promissor, agora fã do ratinho chef Remy, Anton, um homem feliz, espera para ser servido. Perdeu a armadura e a agressividade, apenas desfruta o ambiente. Num dado momento, dirige-se a Remy que agora comanda a cozinha por direito e talento extraordinário e diz: Me surpreenda! Agora eu diria a Deus, sem nada pedir: Surpreenda-me, Senhor.

domingo, 2 de janeiro de 2011

A partida

O presidente Lula passou o ano inteiro se despedindo dos oito anos de mandato. Celebrações, homenagens, inaugurações (até do que não estava finalizado), discursos, choro e outros rapapés ficaram amiúde no último mês. Ganhou tom de saudade desesperada nos últimos quinze dias. A última semana, entretanto, a coisa toda tomou ares de fim de mundo. Esta coluna teve acesso a partes de um discurso (mais um). O que não estava legível e audível, deixamos a criatividade preencher, não sem sólida referência à realidade, pois há sobejo material sobre o tema na internete.

A sala ficou em silêncio respeitoso de repente. Um companheiro, que fazia as vezes de mestre de cerimônias, acabara de anunciar que Lula iria falar. Pouco antes, ele ria com um, fazia chacota com outro, até fez chifrinho na cabeça de um ministro na hora de uma foto. A festa era descontraída. Uma das 453 despedidas que participou somente nos últimos três meses.
Ele parou por segundos olhando a companheirada que aguardava em suspense um suspiro que fosse. Aqui entre vocês, minha gente, estou como pinto no lixo. Oooooohhhh! Aqui posso até dizer “menas”, “probrema” e vocês nem vão reparar. Vocês me compreendem, sou um homem com alma de povo. Alguém, um companheiro mais estudado, não por maldade, por xiste, cochichou ao ouvido de outro completando a frase: “com alma de povo... analfabeto.” Riram discretamente, não sem os resmungos reprovadores dos demais que olhavam súplices seu líder à espera de sua fala vital, vitaminada, alentadora.
Não sei que diga... todos riram e ele se deu conta que tinha feito uma piada involuntária. Dói aqui, apontou para o coração. Aquilo invadiu como uma onda. Lágrimas minaram em canto de olhos que os mais brutos enxugaram com a costa das mãos. Os mais finos, como a companheira Marta, delicadamente, com seu lencinho de seda, que apenas tocou a pele. Outros deixaram a cara ser lavada, queriam mesmo era se lambuzar no choro. Mas já que era tudo descontraído, longe dos olhos de todos, um gaiato ensaiou uma graça e perguntou se a dor era por causa do Corinthians que chegou ao centenário “cem” título.
Uns riram, outros ignoraram a falta de sentimento do incréu. E Lula, minimizando: também por isso companheiro, mas dói porque chegamos ao final. Parou. Fez biquinho e logo enfiava o dedão no olho para aparar a lágrima que escorria. Os companheiros seguiram o choro. Recompôs-se e disse que não abandonaria a luta, continuaria andando por este país, trabalhando pelo povo. No próximo ano vou dirigir uma ONG para beneficiar o povo. Tenho muita sorte. Deus olhou lá de cima e disse: este é o cara! Só depois o Obama falou, então eu já sabia. Romário usou esta frase por que é metido. Até perdoaria se tivesse jogado no curintians, mas no flamengo...?
Tô pensando em 2014. Não se preocupa Dilma! Tô pensando como é que vou fazer campanha pra você. Entre nós posso dizer, nuncaantesnestepaís se viu o que está acontecendo agora. Um presidente, EU, com tamanha popularidade. Me perguntam: e aí, Lula, vai voltar? Não to loco, respondo. Sorte como esta não se repete. Vou queimar meu filme. Mas que dá vontade, isso dá. Volta Lula! Gritou um entusiasmado. Desculpa Dilma. Não leva em consideração a maldade da imprensa que diz que tu vai só esquentar a poltrona.
Acho que vou viajar. Vô visitar o Chavez – talvez não, ele é muito chato. Descansar com Fidelito em Varadero. Não, vô militar por causas universais. Quero dizer, do universo mesmo, quem sabe implantar um bolsa família pros americanos, tão pensando, os coitados tão mal. Obrigado, companheiros, pelo batismo com meu nome no poço de petróleo. FHC vai se morder. Não quero mais a ONU, mas se vocês quiserem me indicar pra prêmio Nobel da paz, tudo bem. Vô fazer política de qualquer jeito. É só o que sei fazer. Vô ajudar a Dilma. Dilma se remexeu na cadeira. Sorriu amarelo. (choro). Biquinho e choro de novo. Até daqui a pouco companheiros. (mais choro, sem biquinho). Com esforço. Feliz 2011!