Por puro tédio deixei-me levar por um destes programas em que o
apresentador viaja a lugares para nos mostrar. Vi “Pedro pelo mundo”.
Talvez porque falasse de um país que admiro: Cingapura. Pedro fez o óbvio,
andou por lugares batidos, nadou na piscina sem fim mais alta do mundo, mas uma
conversa com um “nativo” me fez pensar. O sr. Lee qualquer coisa dizia que a explicação para o sucesso
da cidade-estado estava alicerçado em duas coisas: meritocracia e não
complacência. Pensei: no primeiro caso, com as exceções de praxe, somos
escassos; no segundo, se retirarmos o “não”, temos em abundância, como no
Maranhão o babaçu abunda.
O homem poderia ter explicado com palavras mais concretas – não
que aquelas duas não tenham concretude. Dizer da tecnologia, da educação, nível
de saúde, a localização geográfica estratégica, a multiplicidade étnica, o
ambiente para negócio. Não. Um cidadão comum atribuía o êxito de seu país a
termos que dificilmente usaríamos para descrever nosso ufanístico sucesso brasilis, agora em miserável baixa.
A complacência é um estado d’alma. Alma doente. Como dizia
Riobaldo: viver é muito difícil. A vida, ao que me parece, pede arrojo,
determinação, o que o complacente não consegue ser, pois está amarrado a uma
pedra que afunda chamada indulgência consigo ou com os outros. Complacência é
outro nome para a preguiça, pecado capital definido no catecismo católico.
Nossa cultura, no entanto, transformou a preguiça em algo alegre e prazenteiro.
Dorival Caymmi é seu patrono a modorrar em sua rede condescendente eternamente
à beira da praia, sob coqueiros balouçantes.
Os Provérbios bíblicos tratam do tema. O complacente age como o
preguiçoso: “um pouco para dormir, um pouco para toscanejar, um pouco para
cruzar as mãos em repouso; assim te sobrevirá a tua pobreza como um ladrão, e a
tua necessidade como um homem armado.” (Pv 6.10,11). Nossos sambas exaltam essa
condição: “Quero sombra e água fresca / Eu quero na minha rede balançar /
Brasil, meu Brasil!.” (Samba enredo da Viradouro: Os sete pecados capitais.
Um dicionário diz que o complacente é aquele que tem “inclinação
para concordar frequentemente com outra pessoa com a intenção de satisfazer a
mesma ou de ser agradável”. É o sem opinião. É o maria-vai-com-as-outras. É um
nulo. Em nosso tempo, muitas opiniões nulas. O medo de desagradar aprisionam
pessoas assim. Elas agradam porque recebem escassa aprovação da qual se
alimentam como migalhas catadas no chão. São servis. Os pais os chamam de
obedientes. Os amigos de pessoas boas sempre prontas pra ajudar, mas ai de quem
não agradece: ficam emburrecidos, fazem pirraça. O mundo os vê como bestas e,
por evidente, se aproveitam.
Conheço muita gente que quase sente dores físicas
quando tem que dizer um “não”. Alheiam-se de si mesmos. Delegam suas vidas a
outros que os carregam entre o sentimento de fardo e o tesão por terem uma vida
sob seu domínio. O Brasil é um país de complacentes. Nossa história passada e
presente é uma fieira de acontecimentos – com raras exceções – de atitudes
movidas por pura torta benevolência. Assim tratamos nossos pobres. Assim
definimos quem precisa de cota. Desta forma criamos uma casta de coitados
cheios de fúria merecedora de todo o favor. Precisamos cantar e reler “Vozes da
Seca” de Luís Gonzaga: “Mas doutô uma esmola a um homem qui é são / Ou lhe mata
de vergonha ou vicia o cidadão”.
Obra de MC Escher - Relativity (1953)