segunda-feira, 7 de abril de 2014

Noé, o náufrago

Se algum cinéfilo estava com saudade do Jack Nicholson em sua antológica atuação em “O Iluminado” do Stephen King, mataria a saudade em Noé (Russel Crowe). Por bons minutos, a arca vira o hotel assombrado com um Noé totalmente louco determinado a matar sua (s) neta(s) – nascem gêmeas – filhas de seu primogênito, Sem. Fosse um menino, ele o deixaria viver. Evidente que não qualquer lógica nesse raciocínio.
O personagem do filme supõe que Deus o salvou e à sua família por um capricho, já que, salvos na arca, eles não dariam continuidade à humanidade. O filho mais velho o enterraria e à esposa. O do meio, Cam, enterraria ao irmão e esposa. O menor, Jafé, enterraria a Cam e depois ficaria sentado na sala com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar. Este Noé não entendeu nada. É burro a não mais poder. Uma explicação, em certa parte do filme dita por Cam, é que toda a trabalheira era para salvar os bichos e a terra voltar a ser um paraíso, mas sem gente.
Desconfio que o diretor/roteirista queria fazer uma crítica/leitura da atual situação mundial. A humanidade destruidora, os recursos renováveis se esvaindo, as fontes de água acabando, animais sendo extintos. A terra, na versão do filme, está totalmente devastada e exaurida. A humanidade, literalmente, tornou-se uma praga. Logo, pensam os gênios autores, melhor para a terra extinguir a praga, no que o personagem Noé louco acredita piamente.
Num tempo de não-me-toques com relação a preconceitos, o filme refaz o caminho da culpa de Eva. A mulher de Noé é considerada culpada por interferir nos planos de Deus. Noé acredita que ele e a família são tão culpados quanto os que morreram no dilúvio. Merecem morrer também, desaparecer. A mulher pede a Matusalém que abençoe sua nora para que esta se torne fértil. Grávida, significa que a humanidade continua, logo, muda o plano divino. Uma nova queda ao contrário que Noé deverá evitar a todo custo.
Suspeito que os autores do filme sejam veganos empedernidos. Talvez membros de carteirinha da PETA. Comer carne está associado aos mais baixos instintos e desumanizam as pessoas. Todos os comedores de carne aparecem como maus e monstruosos. O próprio Noé ora se vê assim, numa cena que parece uma visão da realidade do seu mundo.
Por onde li, a crítica não poupou esta versão da fantástica história bíblica. Não é para menos. Recontar uma história clássica até admite a liberdade poética, mas o que se vê no filme é a destruição completa do enredo original que é, à parte da fé, incrivelmente aventuresco e sofisticado.
O Diretor/roteirista ignora períodos de tempo na narrativa original, mistura personagens que não estariam juntos, inclui personagens que são uma piada, os tais guardiões. Uma alusão aos seres gigantes relatados no capítulo 6 de Gênesis? Não dá pra saber. É neste mesmo capítulo que Deus explica a Noé por que destruirá a terra e como ele se salvará.
Cam adolescente e Jafé, uma criança, não têm mulheres e assim continuam até o fim do filme. Outra distorção do filme. Na versão bíblica, eles são adultos e têm, cada qual, sua mulher. Já no filme, o pobre Cam, parece um cachorro no cio, doido para arrumar uma mulher, mas o pai maluco lhe nega. Mesmo quando ele consegue uma garota, o pai a deixa morrer. A nova terra tem uma geração humana que não tem futuro. Talvez ao gosto dos fanáticos ecochatos.

O filme é um desperdício. Crowe, definitivamente, não está em seus melhores dias. Confesso que acabo tendo mais simpatia pelo malévolo Tubalcaim – outro personagem deslocado no tempo – do que pelo Noé. Com os efeitos especiais de que se dispõe hoje no cinema, a história poderia ser ricamente contada sem precisar distorcê-la a ponto de ficar quase irreconhecível. Aliás, reconhecível apenas porque há um dilúvio e uma arca. Isso aí o autores do filme não tiraram. Mas é, pasmem, um evento menor. Fora a condenação de Deus para explicá-lo, não há mais muito no que pensar. A história de Noé, nesse filme, é melancólica. Longe anos luz da esperança, da misericórdia e do perdão divinos que a história verdadeira evoca. Não vejo necessidade maior nos dias de hoje.

domingo, 6 de abril de 2014

O ovo da discórdia

O Procon Estadual do Rio de Janeiro, por meio da Defesa do Consumidor (Seprocon), suspendeu a venda dos ovos de páscoa Bis Xtra + Chocolate, da Lacta, nesta quarta-feira (2). A venda foi interrompida, de acordo com o órgão, por considerar que o produto incentiva o bullying.

Fonte: GI Rio (02/04/2014)

Depois do ovo da Clarice Lispector – por favor, a maravilhosa Clarice nunca pôs um ovo – não se viu ovo assim sem galinha, sem pena nem brancura. Ela escreveu um texto que não me arvoro a dizer em que categoria, dado o inusitado do tema, sobre um ovo com o qual ela inesperadamente se depara certa manhã. O que ocorreu, de fato, foi um alumbramento inspirativo e aí, saiam de baixo, nasceu um dos textos mais esquisitos e curiosos da literatura brasileira. Ela modificou aquela frase estúpida das cartilhas de abecê: Ivo viu a uva. Para: eu vi o ovo.
Mas dizia que depois do ovo quântico e cosmogônico da Clarice, o ovo mais perturbador de que se tem notícia – foi elevado a esta categoria por causa das suscetibilidades de mentezinhas do Procon do Rio de Janeiro – foi o ovo de Páscoa de uma empresa de chocolates. Vamos que o departamento de marketing e quem aprovou a estratégia para vender o tal ovo demonstrou um sem-noção abissal. Está certo que quem vende ovo está se lixando para a Páscoa propriamente dita e seus significados, querem é vender os indefectíveis ovos que brotam nas gôndolas de supermercado como cogumelos depois da chuva.
Acho que queriam balançar as campanhas óbvias e mornas. A chatice que é andar por baixo daqueles corredores poloneses de ovos pendurados. Queriam dizer que seu ovo é melhor que os outros, que é descolado, que é ultra-qualquer-coisa, que é mais elipsóide que os demais, por aí. Então, a tal empresa resolveu colocar dentro dos ovos ocos adesivos, como se fosse um ovo de carnaval ou do dia das bruxas. Na capa do ovo se dizia: “Sacaneie seus amigos”. E dentro do ovo boçal haviam adesivos com singelos dizeres: “morto de fome”, “nerd”, “nervosinho” e sei lá mais o quê. Vão ganhar o prêmio de criatividade jumenta do ano. Criei o prêmio agora.
Percebam a delicadeza. Em tempo de, pelo menos culturalmente, contrição, resguardo, introspecção, os caras sugerem que você dê uma sacudida neste marasmo e nestas baboseiras e... sacaneie seu amigo. Convenhamos que, em momentos apropriados, é divertido. Este, naturalmente não é “o ovo certo” de que falou a Clarice. É o ovo torto, endiabrado, perpetrador da desunião, diferente anos-luz do ovo Clariceano que lhe medita e idealiza.
Mas ovo sacana à parte, o fato real é que você e eu vivemos à mercê dos malucos do politicamente correto que viram no ovo um atentado aos mais comezinhos valores cristãos. À tradição secular e milenar da celebração do renascimento de Cristo que o ovo, como símbolo da fertilidade, sugere. Dona Cidinha, Secretaria dos Direitos do Consumidor fluminense viu o ovo também, mas nele um pavio e a bomba do bullying. Em defesa daqueles que, incautos, comprando o ovo-peste poderiam se tornar vítimas ou vitimadores de outros com os adesivos infernais, decretou: doravante o ovo-deboche será banido das prateleiras. Ou muda o ovo ou não vende.
O mundo acordou mais assustado que morador da favela em dia de tiroteio. Era caso de defesa nacional e salvação da burra patuléia. A heroína Cidinha, abufelada por tamanha heresia, pôs-se a discursar sobre as impropriedades dietéticas do ovo mefistofélico. Clarice, coitada, se viva estivesse, teria uma síncope, pois escrever sobre o ovo, da forma como fez, só uma vez na vida. O que faria com este ovo ameaçador da paz mundial?
Cidinha, sozinha, jamais teria acordado para o ovo infame, não fosse as temíveis redes sociais. Ali, loucos, cismáticos, paranoicos despejam suas elucubrações, cerceiam, fuxicam, censuram o que lhes dá na telha. Ai do infeliz que cair na boca das redes! Era a voz do povo contra o ovo. Cidinha, política sagaz, entoou o cântico da Páscoa ao lado dos ofendidos com o ovo. Interveio porque vários coelhinhos, que parecem carregar os danados dos ovos pra lá e pra cá, haviam sido chacinados como culpados, embora, miseráveis criaturas, nada tivessem com o peixe, digo, ovo.

Ao final de tão grave imbróglio que mexeu com o sono de líderes mundiais, quiçá, estratosféricos intergaláticos, decidiu-se que a sugestiva e malévola frase “sacaneie seu amigo” ou seria retirada da embalagem ou tapada. Os adesivos, as verdadeiras setas assassinas, permaneceriam na barriga dos ovos, posto que arrancá-los de lá levaria a uma mortandade mais sanguinária de ovos que de golfinhos na baía japonesa de Taiji.