Se algum
cinéfilo estava com saudade do Jack Nicholson em sua antológica atuação em “O
Iluminado” do Stephen King, mataria a saudade em Noé (Russel Crowe). Por bons
minutos, a arca vira o hotel assombrado com um Noé totalmente louco determinado
a matar sua (s) neta(s) – nascem gêmeas – filhas de seu primogênito, Sem. Fosse
um menino, ele o deixaria viver. Evidente que não qualquer lógica nesse
raciocínio.
O personagem
do filme supõe que Deus o salvou e à sua família por um capricho, já que,
salvos na arca, eles não dariam continuidade à humanidade. O filho mais velho o
enterraria e à esposa. O do meio, Cam, enterraria ao irmão e esposa. O menor,
Jafé, enterraria a Cam e depois ficaria sentado na sala com a boca escancarada,
cheia de dentes, esperando a morte chegar. Este Noé não entendeu nada. É burro
a não mais poder. Uma explicação, em certa parte do filme dita por Cam, é que
toda a trabalheira era para salvar os bichos e a terra voltar a ser um paraíso,
mas sem gente.
Desconfio que
o diretor/roteirista queria fazer uma crítica/leitura da atual situação
mundial. A humanidade destruidora, os recursos renováveis se esvaindo, as
fontes de água acabando, animais sendo extintos. A terra, na versão do filme,
está totalmente devastada e exaurida. A humanidade, literalmente, tornou-se uma
praga. Logo, pensam os gênios autores, melhor para a terra extinguir a praga,
no que o personagem Noé louco acredita piamente.
Num tempo de
não-me-toques com relação a preconceitos, o filme refaz o caminho da culpa de
Eva. A mulher de Noé é considerada culpada por interferir nos planos de Deus.
Noé acredita que ele e a família são tão culpados quanto os que morreram no
dilúvio. Merecem morrer também, desaparecer. A mulher pede a Matusalém que
abençoe sua nora para que esta se torne fértil. Grávida, significa que a
humanidade continua, logo, muda o plano divino. Uma nova queda ao contrário que
Noé deverá evitar a todo custo.
Suspeito que
os autores do filme sejam veganos empedernidos. Talvez membros de carteirinha
da PETA. Comer carne está associado aos mais baixos instintos e desumanizam as
pessoas. Todos os comedores de carne aparecem como maus e monstruosos. O
próprio Noé ora se vê assim, numa cena que parece uma visão da realidade do seu
mundo.
Por onde li, a
crítica não poupou esta versão da fantástica história bíblica. Não é para
menos. Recontar uma história clássica até admite a liberdade poética, mas o que
se vê no filme é a destruição completa do enredo original que é, à parte da fé,
incrivelmente aventuresco e sofisticado.
O Diretor/roteirista
ignora períodos de tempo na narrativa original, mistura personagens que não
estariam juntos, inclui personagens que são uma piada, os tais guardiões. Uma
alusão aos seres gigantes relatados no capítulo 6 de Gênesis? Não dá pra saber.
É neste mesmo capítulo que Deus explica a Noé por que destruirá a terra e como
ele se salvará.
Cam
adolescente e Jafé, uma criança, não têm mulheres e assim continuam até o fim
do filme. Outra distorção do filme. Na versão bíblica, eles são adultos e têm,
cada qual, sua mulher. Já no filme, o pobre Cam, parece um cachorro no cio,
doido para arrumar uma mulher, mas o pai maluco lhe nega. Mesmo quando ele
consegue uma garota, o pai a deixa morrer. A nova terra tem uma geração humana
que não tem futuro. Talvez ao gosto dos fanáticos ecochatos.
O filme é um
desperdício. Crowe, definitivamente, não está em seus melhores dias. Confesso
que acabo tendo mais simpatia pelo malévolo Tubalcaim – outro personagem
deslocado no tempo – do que pelo Noé. Com os efeitos especiais de que se dispõe
hoje no cinema, a história poderia ser ricamente contada sem precisar
distorcê-la a ponto de ficar quase irreconhecível. Aliás, reconhecível apenas
porque há um dilúvio e uma arca. Isso aí o autores do filme não tiraram. Mas é,
pasmem, um evento menor. Fora a condenação de Deus para explicá-lo, não há mais
muito no que pensar. A história de Noé, nesse filme, é melancólica. Longe anos
luz da esperança, da misericórdia e do perdão divinos que a história verdadeira
evoca. Não vejo necessidade maior nos dias de hoje.
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