sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O rosto perdido



Em entrevista à revista norte-americana "People", a atriz comentou a polêmica: “Estou contente que as pessoas tenham notado que eu pareço diferente. Me encontro em um momento diferente e gratificante. Fico entusiasmada que isso seja visível”. Renée ainda disse à publicação que está saudável e cuidando de sua saúde como nunca antes havia feito, já que passou muito tempo se preocupando com outras funções de sua vida.
Fonte: Bianca Iaconelli (Do UOL, em São Paulo, 21/10/2014) 

Um dia, ela se olhou no espelho como sempre fazia. Seu rosto, seu cartão de visita, parecia cansado naquela manhã. As rugas apareceram inexplicáveis de uma hora para outra. Como é que ela não notara? Dormira tanto assim? Um coma: teria sido isso? Ficara em coma por bons dez anos ou mais a julgar por aquelas gavinhas nos cantos dos olhos. E as bochechas vincadas como canyons? O que teria acontecido para dar naquele leve retorcido na boca e os dois enormes parênteses que cercavam seu sorriso morno naquela manhã?
De repente, sentiu um enorme horror. Seus olhos arregalaram como se fossem sacar das órbitas. Era a velhice! Chegara insidiosa e sorrateira sem avisar. Não vira nada. Quase perguntara como o poeta Mario Quintana, também espantado consigo mesmo, mas a quem chamou de o estranho que mora no espelho: “quem é esse que me olha e é tão mais velho do que eu?” Mas não o conhecera e apenas desconheceu-se em silêncio inquieto.
Logo se lembrou de incontáveis atrizes como ela que foram eternizadas no frescor da juventude em filmes que já faziam décadas, agora lembrava e reconhecia, era sua história também. Teve grande medo de enlouquecer como a atriz decadente Norma Desmond (Gloria Swanson) de “Crepúsculo dos Deuses” que diz a certa altura, presa ao passado dos filmes mudos: “nós não precisávamos de diálogos! Nós tínhamos rostos!” Pois é, o verbo no passado gritava que ela não tinha mais rosto. Quer dizer, tinha um fora dos padrões hollywoodianos da mocinha que outrora interpretou.
Aquilo que a maquiagem não dá conta, o bisturi resolve. Há um cirurgião plástico em cada esquina de Beverly Hills. Alegremente, nossa heroína consultou um especialista que lhe devolveu o encanto quando disse que ela retornaria aos doces anos do viço na pele, do traço leve e belo, à perdida expressão jovial. Um repuxão ali, uma esticada aqui e uma diminuição acolá: pronto, eis a musa. Ouso mais, disse o homem que já perdera os limites: você será o Dorian Gray feminino redivivo. Havia até uma versão final digital para que a cliente pudesse antever o resultado.
Apenas a consulta já lhe devolvera metade da juventude perdida, o que não seria a intervenção propriamente dita? Marcados dia e hora, submeteu-se como quem se entrega ao renascimento de um batismo sagrado. Passados dias de recuperação, era chegada a hora da estreia do rosto novo. O especialista elogiava a si mesmo, alegando perfeição de sua obra. Ela parecia buscar uma referência conhecida. Quanto mais o homem falava, mais estranhada ela se sentia. Até que perguntou, nem pensou na hora: quem é esta? Com o espelho diante de si, viu morrer a alegria besta do médico. Como assim, quem é esta?
Traga-me o espelho, pediu ela. Mas isto é um espelho, disse ele impaciente. Ela o tomou entre as mãos e olhou aquele nariz, o queixo, a testa que parecia ter aumentado, embora estivesse esticadíssima. O médico, com receio, perguntou: agora você sabe, não é? É normal este impacto inicial. Já já você acostuma. Ainda há um pouco de inchaço, vermelhidão... Ela o olhou. Havia tensão naquele instante. Não sei quem é esta. Sei que se parece comigo ou alguém que conheço. O médico havia apertado o botão de emergência para reações que namoravam o surto psicótico. A galera da camisa de força viria em seguida com uma boa dose de Torazine. 
A gente vota pela cara. A gente come com os olhos. A gente compra pela aparência. A gente se encanta com o design. A gente é seduzido pela forma. O aparente é nossa praia.