quarta-feira, 5 de abril de 2017

Não sou tão ruim assim, sou vítima do machismo

A história teve enorme repercussão. Começou como fogo em monturo: é quente, há fumaça, mas não há labareda. Bem, até achar um combustível mais incendiário. No caso em questão foi a realidade que se impõe de novas e necessárias relações entre homens e mulheres, mas também pelo escândalo em que a coisa se tornou. Um ano antes, a moça fez uma reclamação no RH e nada.
“E agora José?” O primeiro movimento do ator José Mayer foi clássico quando alguém é pego em flagrante delito, mas que a ficha ainda não caiu. Institivamente, o sujeito nega que tenha praticado uma versão bruta do teste do sofá. Tenta, como ele, vender-se acima do bem e do mal evocando seu lugar de homem público que se coaduna com as boas relações de respeito às colegas. Neste momento a ferramenta é a dissonância cognitiva, afinal a fera só atacava nos bastidores. A versão pública era a estrela. Em seguida clama por suas relações familiares, que é sempre um bom salvo conduto de toda canalhice.
Derramado o leite, sem saída, encalacrado com a mão na botija, a esquerda, literalmente, exposto pela investigação, suspenso, a saída, única possível em tais circunstâncias: confessar. O caminho da redenção sempre começa com a confissão e possível reparação. Uma carta aberta, que tal?
Mas, refeito do susto, com algum grau de controle de si, despertado para a perda gigantesca de credibilidade, o que implica em perda financeira também, está atordoado. O sujeito não está disposto também à autoimolação no altar do sacrifício ante a plateia do “mexeu com uma, mexeu com todas”, a opinião pública que brada por uma fogueira em praça. Então é preciso uma saída em que se admita o mal feito, mas também que, de algum modo, se é vitima, o que relativiza a culpa.
Aqui está o X da questão na carta. Talvez a única coisa que escape em toda ela é a frase com duas palavras: “Eu errei.” Todo o resto é dispensável. Exceto aquilo que não está lá: peço perdão. A segunda frase, embora ratifique o “eu errei”, prepara o terreno para o mais importante: sou vítima. Gozei, aproveitei, me esbaldei nesta condição por sessenta anos, mas exposto, digo que aprendi e estou em reforma, mas não teria aprendido se não fosse pego, porque era bom e sempre deu certo.
A vitimização pela cultura machista é uma boa estratégia, mas não funciona. É razoável crer que um ator com toda esta cancha, dezenas de papeis de galã e mocinho, sequer desconfiasse que, no quesito em que falhou, já não se admite? O pessoal tem cisma do fiufiu, que dizer da mão boba? Ou ele tinha toda a confiança de que poderia fazê-lo sempre sem nada dar errado?
Condenar o machismo porco chauvinista é ótimo – mesmo que admita ser um, momentaneamente, por 60 anos – para a plateia feminista e o povo do politicamente correto. Mas será mesmo que os “Zecas Bordoadas” são os culpados? Ou a empáfia, o senso de onipotência cevado em papeis que o galgaram ao lugar de astro e no qual, parece, ele acreditava piamente? A sensação de segurança por morar no Olimpo global para quem uma mulher jamais diria não? A decrepitude que ameaça na esquina, afinal o sujeito vive de aparência e agarrar uma donzela talvez funcione como um antídoto? O exercício de uma virilidade capenga, de um garanhão ameaçado por outros machos candidatos ao posto alfa? Ter a doce, inebriante e perigosa sensação de poder sobre um outro inferior? Dar vazão ao seu narcisismo rapinante?
O singelo palavrão com que alcunhou a vítima – Vaca – revela um homem tomado de frustração, um homem cheio de soberba, que se percebe no controle, mas que o vê desafiado por uma “reles” figurinista que, por razão que lhe escapa, não cede aos seus arroubos chinfrins. O que ela pensa que é?
Explorar a versão de um homem em processo de reestruturação é uma boa sacada, mas também não funciona quando se coloca no lugar de mártir, o primeiro de uma raça livre daquele vírus chamado machismo. Sua nova persona, refeita, refinada no que chama de “dolorosa necessidade de mudança”, se torna um exemplo e um convite para tantos que pensavam e agiam como outrora foi: que mudem!
É uma versão sofisticada do mantra tristemente consagrado pelo petismo: todos fazem... e na cabeça do público um pensamento, ele espera, complementa a frase: então não sou tão ruim assim. Mas isso é só cinismo.