terça-feira, 3 de março de 2015

Ela



Há uma foto que zanza pelo whatsapp em que um grupo de pessoas espera um trem. Todos estão com os olhos fincados em seus respectivos celulares. A foto, para os padrões vertiginosos de nossa época, é velha, mas não deve ter mais que dois anos, se muito.
A foto não causa mais qualquer estranheza, somos nós mesmos, diariamente e em todos os lugares, quem a protagonizamos. Estamos afogados por serviços que nos ofertam e que, dizem, precisamos; apps indispensáveis, novidades, amigos que pedem inclusão em nossa rede e pouco se nos dá a respeito deles, compras; a vida mesma corre agora paralela ao mundo virtual, encolhida.
O filme não discute, portanto, nenhuma novidade, mas dá vida a um personagem que pode ser qualquer um. Theodore (Joaquin Phoenix) é um sujeito simples, frugal, solitário. Ganha a vida numa empresa que vende cartas virtuais. Ele está acostumado a viver sentimentos e dores alheias, mas, para si mesmo, segue anestesiado, apenas sentindo a solidão. Separou-se da esposa há um ano, mas nunca teve coragem de assinar os papeis porque alega que gosta de estar casado, e desculpa-se que é preciso pensar um pouco, mas, naturalmente, ele não o faz. Nem mesmo ama a ex. A amarra legal serve, longinquamente, para lhe dar a sensação de proximidade e de vínculo com alguém.
Por acaso, ele descobre um novo e estonteante serviço. Uma assistente pessoal, como a Siri da Apple, mas mais sofisticado. Esta inteligência artificial aprende continuamente e, aos poucos, ganha mais parecença com um ser humano a ponto de, a certa altura, não se saber se a voz de Samantha não esconde alguém de verdade.
Ainda não me acostumei com pessoas rindo para o vazio. Gesticulando para o vento. Perdidas em suas vozes e imagens. O filme passa ao largo desta interessante vertente. Pessoas absorvidas no seu mundo virtual-matrix. Indiferentes umas às outras. O real nada vale. O contato é só percepção. A vivência é impura e catastrófica. Que importa se seremos devorados por Caríbdis ou hipnotizados pelo canto das sereias?
Samantha é eficientíssima. Como uma secretária humana. Ela vê os e-mails, é capaz de respondê-los se sabe o que pensa o destinatário que o recebeu pelas conversas que teve com ele. E várias outras coisinhas que o filme não se detém, mas pode-se imaginar: tempo, diversão, compras, programas, viagens, mapas, coisas que hoje o leviatã Google trata de unificar cada vez mais para ofertar dia desses com uma Samantha pra cada um.
Quando Theodore se espanta, está tendo conversas sobre a ansiada humanidade que Samantha desejaria ter. Perguntas cavilosas que ela se faz sobre sua virtualidade, mas ao mesmo tempo sentimentos que jura ter. Samantha chega a cortejar Theodore que, por fim, cede a este estranho romance. Nasce uma relação com sexo. Samantha tem um êxtase. A tela fica escura e a sugestão é toda da plateia. Em cada espectador haverá um cena. “Sexo verbal não faz meu estilo / Palavras são erros e os erros são seus / Não quero lembrar que eu erro também. Lembram do Renato Russo?
Samantha servirá de desculpa para, num encontro com uma mulher real, Theodore fugir de uma relação a dois, real. Ele gosta da menina, mas gente é mais complicado. Samantha até ensaia um ciúme, mas está longe de um olhar perscrutador, inquiridor de uma mulher desconfiada. Samantha é um amor perfeito. Muitas cenas são gastas nos passeios dele com sua namorada. Ele parece satisfeito e feliz. Mas tudo se desgasta. A relação entra em crise. Ela liga, ele não atende. Depois ele a busca e ela se esquiva. Estava com um amigo novo, um sistema operacional mais interessante que Theodore.
A robô se expande em conhecimento e, de repente, Theodore descobre que Samantha que lhe jura amor, também o faz para dezenas de outros. Na verdade, a mente cibernética por trás do programa, ama cada pedaço de humanidade que encontra em cada homem. Mas Theodore não está disposto a dividi-la, miseravelmente humano que é. 
O fim do namoro é uma volta ao básico. Humanos são complicados, difíceis, instáveis, detestáveis, traidores, iracundos, mal humorados, alegres, surpreendentes, belos, sensíveis. Theodore volta para a mulher conhecida, de um namoro de faculdade. Previsível?

domingo, 1 de março de 2015

A polêmica do “bolsa patroa”



A decisão da cúpula da Câmara de permitir que maridos e mulheres dos deputados tenham direito a passagens aéreas provocou um burburinho nos corredores da Casa e num plenário com mais de 300 deputados em plena quinta-feira (26).

Fonte: Folha de São Paulo, seção Poder. (27/02/2015)

Havia uma nova regra. Para cada medida parlamentar, fosse qual fosse, os autores do malfeito deveriam defender a ideia também para a população. É verdade. Um disparate. Mas que fazer? Havia que dizer que aquele gasto serviria para aliviar impostos – não sei como isso é possível, mas eles são muito criativos – ou como aquela verbinha acrescida aos muitos penduricalhos proporcionaria uma atuação mais eficiente do legislador.
Aquilo caiu como uma bomba. Um deles – sempre tem um espírito de porco – disse logo que se deixasse com os duzentos e trinta e dois jornalistas servidores da Câmara. Mas não tinha como escapar. O povo, este bicho sem cabeça que ninguém sabe o que é, havia peticionado esta pequena prestação de contas. Assim, só para saber mesmo. Não era cobrança. Os deputados e senadores poderiam continuar a fazer o que quisessem, bastava dizer lá com suas palavras para que serviria cada traquinagem.
Para que nenhuma das nobilíssimas excelências se sentisse constrangida, o candidato a responder seria sorteado entre os 513 membros da excelsa Câmara. Coisas mais cabeludas pediriam mais explicadores. Não precisa dizer que o sorteio foi fraudado quatro vezes. Nada fora do comum. Alguns pobres coitados, que tinham tal fobia de serem sorteados que usaram deste expediente nunca visto antesnestepaiz. Até aumentaram os gastos com as verbas indenizatórias de saúde, o que os deixou numa saia justa para achar tanta nota fiscal para justificar. Tinha até compra de prego caibral. Um despautério, pois não? Investigações pró-forma acusaram o Arruda e até Antonio Carlos Magalhães, já defunto há tempos. Tadinhos, o dedo sujo ainda os persegue.
Claro que houve rebelião. Existem, no momento, mais de 800 propostas de mudança da norma explicadora. Já houve greve de uma obscura bancada apartidária, mas nada. Uma praga, dizem eles. Enfim. Tiririca, notável entre notáveis, foi sorteado para explicar o “bolsa patroa”. Passagens infinitas para carregar a digníssima para Brasília. Disse ele com sorriso com dentes. O sem dentes é para a performance como palhaço. “Marminino! Eu que não vou deixar de carregar minha senhora já que estão me mandando. Eu não pedi. Ela tá doidinhaaaaaa!”
Um tal Russo e Mano alegou com propriedade que o “bolsa aeropatroa” salvaria casamentos, pois eles estavam exilados naquele fim de mundo e os casamentos acabavam. Outro emendou, sem ser chamado, que diminuiria os chifres também e um terceiro, da ala evangélica, aparteou que a cafetinagem das Jeanys Mary Corner iriam acabar, uma pouca vergonha. E logo foi provocado por petista defensor das ditas meninas, que o desemprego iria aumentar ainda mais, piorando os números da presidente. 
Explica daqui, explica dali e mais 150 milhões descendo pelo ralo com o mimo. Marcos Infeliciano disse que era justíssimo, mas era melhor fazer noutro momento ou se, conviesse, com outro nome ridículo como “ajuda paletó”, poderia ser “ajuda matrimônio”, mais palatável, opinou. O danado é que o tal povo, aquele bicho mentecapto, não reagia a nenhuma das nobres explicações. Pediram socorro ao presidente da casa das patranhas.  Este, humilde e candidamente, disse duas coisas: que descontaria o valor gasto com economia sabe-se lá de onde. E que o transporte era só para as esposas. Namorada, não. E tem mais, se quiser usa, se não quiser não usa. Tenho dito.