domingo, 6 de abril de 2014

O ovo da discórdia

O Procon Estadual do Rio de Janeiro, por meio da Defesa do Consumidor (Seprocon), suspendeu a venda dos ovos de páscoa Bis Xtra + Chocolate, da Lacta, nesta quarta-feira (2). A venda foi interrompida, de acordo com o órgão, por considerar que o produto incentiva o bullying.

Fonte: GI Rio (02/04/2014)

Depois do ovo da Clarice Lispector – por favor, a maravilhosa Clarice nunca pôs um ovo – não se viu ovo assim sem galinha, sem pena nem brancura. Ela escreveu um texto que não me arvoro a dizer em que categoria, dado o inusitado do tema, sobre um ovo com o qual ela inesperadamente se depara certa manhã. O que ocorreu, de fato, foi um alumbramento inspirativo e aí, saiam de baixo, nasceu um dos textos mais esquisitos e curiosos da literatura brasileira. Ela modificou aquela frase estúpida das cartilhas de abecê: Ivo viu a uva. Para: eu vi o ovo.
Mas dizia que depois do ovo quântico e cosmogônico da Clarice, o ovo mais perturbador de que se tem notícia – foi elevado a esta categoria por causa das suscetibilidades de mentezinhas do Procon do Rio de Janeiro – foi o ovo de Páscoa de uma empresa de chocolates. Vamos que o departamento de marketing e quem aprovou a estratégia para vender o tal ovo demonstrou um sem-noção abissal. Está certo que quem vende ovo está se lixando para a Páscoa propriamente dita e seus significados, querem é vender os indefectíveis ovos que brotam nas gôndolas de supermercado como cogumelos depois da chuva.
Acho que queriam balançar as campanhas óbvias e mornas. A chatice que é andar por baixo daqueles corredores poloneses de ovos pendurados. Queriam dizer que seu ovo é melhor que os outros, que é descolado, que é ultra-qualquer-coisa, que é mais elipsóide que os demais, por aí. Então, a tal empresa resolveu colocar dentro dos ovos ocos adesivos, como se fosse um ovo de carnaval ou do dia das bruxas. Na capa do ovo se dizia: “Sacaneie seus amigos”. E dentro do ovo boçal haviam adesivos com singelos dizeres: “morto de fome”, “nerd”, “nervosinho” e sei lá mais o quê. Vão ganhar o prêmio de criatividade jumenta do ano. Criei o prêmio agora.
Percebam a delicadeza. Em tempo de, pelo menos culturalmente, contrição, resguardo, introspecção, os caras sugerem que você dê uma sacudida neste marasmo e nestas baboseiras e... sacaneie seu amigo. Convenhamos que, em momentos apropriados, é divertido. Este, naturalmente não é “o ovo certo” de que falou a Clarice. É o ovo torto, endiabrado, perpetrador da desunião, diferente anos-luz do ovo Clariceano que lhe medita e idealiza.
Mas ovo sacana à parte, o fato real é que você e eu vivemos à mercê dos malucos do politicamente correto que viram no ovo um atentado aos mais comezinhos valores cristãos. À tradição secular e milenar da celebração do renascimento de Cristo que o ovo, como símbolo da fertilidade, sugere. Dona Cidinha, Secretaria dos Direitos do Consumidor fluminense viu o ovo também, mas nele um pavio e a bomba do bullying. Em defesa daqueles que, incautos, comprando o ovo-peste poderiam se tornar vítimas ou vitimadores de outros com os adesivos infernais, decretou: doravante o ovo-deboche será banido das prateleiras. Ou muda o ovo ou não vende.
O mundo acordou mais assustado que morador da favela em dia de tiroteio. Era caso de defesa nacional e salvação da burra patuléia. A heroína Cidinha, abufelada por tamanha heresia, pôs-se a discursar sobre as impropriedades dietéticas do ovo mefistofélico. Clarice, coitada, se viva estivesse, teria uma síncope, pois escrever sobre o ovo, da forma como fez, só uma vez na vida. O que faria com este ovo ameaçador da paz mundial?
Cidinha, sozinha, jamais teria acordado para o ovo infame, não fosse as temíveis redes sociais. Ali, loucos, cismáticos, paranoicos despejam suas elucubrações, cerceiam, fuxicam, censuram o que lhes dá na telha. Ai do infeliz que cair na boca das redes! Era a voz do povo contra o ovo. Cidinha, política sagaz, entoou o cântico da Páscoa ao lado dos ofendidos com o ovo. Interveio porque vários coelhinhos, que parecem carregar os danados dos ovos pra lá e pra cá, haviam sido chacinados como culpados, embora, miseráveis criaturas, nada tivessem com o peixe, digo, ovo.

Ao final de tão grave imbróglio que mexeu com o sono de líderes mundiais, quiçá, estratosféricos intergaláticos, decidiu-se que a sugestiva e malévola frase “sacaneie seu amigo” ou seria retirada da embalagem ou tapada. Os adesivos, as verdadeiras setas assassinas, permaneceriam na barriga dos ovos, posto que arrancá-los de lá levaria a uma mortandade mais sanguinária de ovos que de golfinhos na baía japonesa de Taiji.

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