domingo, 29 de novembro de 2015

A tara

O TJ (Tribunal de Justiça) de São Paulo absolveu, em decisão publicada na segunda quinzena de novembro, um homem que admitiu ter furtado mais de 20 calcinhas do varal de sua vizinha em Piracaia, cerca de 100 km da capital.
Fonte: Eduardo Schiavoni. Colaboração para o UOL, em Ribeirão Preto (25/11/2015)

Era réu confesso. Que fazer? Havia sido pego com a mão enfiada na botija. Todo o mistério do sumiço das calcinhas fora desvendado por reles câmera que hoje qualquer camelô chinfrim vende na esquina. Só não está pior que o Delcídio e sua versão de ajuda humanitária a um delator que podia lhe causar um buraco gigante na sua reputação. Preso, não mentiu ao delegado, embora tenha como que acordado do transe e sentido um pouco de vergonha. Confessou tudo, num arroubo de sinceridade suicida.
Por bom tempo, aquilo fora um segredo daqueles que se vive o antegozo de quando se é o único a saber. Ouvir as fofocas da vizinhança, a sensação de estranheza das pessoas, o disse-me-disse sobre o suposto autor, quando se está ali, ao alcance da mão, dentro de um elevador, ou partilhando o balcão da padaria da esquina. Isso dá ao criminoso uma sensação de poder, de superioridade, de distinção ante seus próprios olhos. Era assim que se sentia o Silva.
Passada a surpresa dos vizinhos, a coisa já corria de boca em boca, a despeito de a vítima ter tentado manter os furtos sob sigilo, pois provavelmente se sentia envergonhada com a exposição. Pensava nas piadas de que poderia ser vítima. Temia ser vista como uma mulher que desperta a tara alheia.
Há coisas incoercíveis dentro de nós. Estão adormecidas. Parece que se fingem de mortas. Aguardam sorrateiras o momento oportuno para se manifestar como gatunas de nossa vontade. Uma vez manifestas, nem que seja por leve sugestão, crescerão como a mistura de fermento com bromato no pão. Infladas, elas nos carregarão para as profundezas das taras que açulam.
E de nada adianta pensamento positivo. Os chicoteios da culpa moral. A consciência berrará feito louca, e logo se dará uma luta sangrenta entre a compulsão da vontade e os, a essa altura, frágeis interditos que nos pespegaram o juízo e deram num castelinho de crenças, agora minadas pelo desejo que escoiceia como cavalo louco.
Dirão alguns, pelo visto de nada temos culpa, somos todos vítimas de nossas mazelas ocultas. Sim e não. A resposta é difícil. Veja o caso de Silva. Sujeito que se via normal. Um trabalho simples, vidinha besta como diria Drummond. Mas um dia a Besta dentro dele acordou. Foi só um olhar furtivo na calcinha que, como bandeira a tremular feromônios, espargia suas más intenções. Silva sentiu um calafrio que lhe subiu pela espinha e instantâneo o desejo surgiu. Pequenininha, arteira, travessa, buliçosa balançava suave à brisa da tarde.
Um plano louco se lhe tomou a mente. Tentou ver tv, comer, olhar o face, nada. Cada minuto o plano ia e vinha. Voltar e pegar calcinha. Sua mente perturbada via a mulher dos sonhos dentro dela. Todo tipo de pensamento veio como matilha de demoniozinhos a sugerir coisas das mais românticas até as mais assanhadas fantasias sexuais.
Cedeu ao primeiro ímpeto e então se tornou preso ao vício. Não eram só as calcinhas e os prazeres que elas proporcionavam. E toda a adrenalina de pensar planos para furtar o objeto do irrefreado desejo? O medo de ser pego? Não havia mais limite. A coleção foi aumentando, o rumor da vizinhança também. A fantasia assomou em vertiginosa rapidez e já não eram suficientes as horas de homenagem solitária, passou a vesti-las. Ia ao trabalho com elas, porque a fantasia estava descontrolada. Deu muitos bons dias à vítima vestido em sua calcinha, conversou com pessoas próximas até na tentativa de adivinhar quem era o tarado, enquanto gozava o prazer do seu segredo.
O que era prazer tornou-se logo um sofrimento, uma escravidão. Ficou cada vez mais ousado, pois a dose de perigo precisava ser aumentada para satisfazer ao vício. Sabia que seria pego. Mas vestido em três calcinhas? Foi um alívio! O chato agora é que virou meme. Sua foto de tanguinha vermelha foi usada até em propaganda de sex shop para um natal apimentado. Existe louco pra tudo.

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