O pequeno príncipe de
Antoine de Saint-Exupéry é uma das obras mais traduzidas do mundo – mais de 250
traduções. Até o ano passado havia vendido um número superior a 140 milhões de
exemplares. Um feito grandioso para um livro que ao longo de seus setenta e
quatro anos tem fascinado muitas gerações.
Algumas de suas frases
têm sido repetidas e citadas um sem número de vezes nas mais diversas
situações. Uma delas tornou-se um clássico: “Tu te tornas eternamente
responsável por aquilo que cativas”. A fala é dita pela raposa. Ela explica que
cativar é fazer com alguém se torne distinto e especial para nós. Cativar,
segundo a raposa, é tornar alguém especial para si e ser o mesmo para o outro. O
aforismo fecha diálogo.
A frase me veio à mente
quase que automaticamente. Não recordo o que me fez relembrá-la. Algo deu um
estalo em mim. Um incômodo. Como se ao ouvir uma música conhecida percebesse
uma nota dissonante, ouvisse o cantor desafinar. O que seria?
Aviso, não sou do
contra. A frase tem seu valor, mas... a responsabilidade que evoca está bem
para além do razoável. Confesso que tentei salvar a frase para mim mesmo. Mas
os senões se multiplicavam em minha cabeça. Ser responsável é se importar?
A maioria das pessoas
entende o “aquilo” como outra pessoa, afinal uma cadeira ou um planetinha não
pode ser cativado, o contexto do diálogo reforça a ideia. Então, ao cativar,
encantar, seduzir, maravilhar alguém – não encantá-la no sentido de enfeitiçar
–, você se torna responsável por mantê-la com a mesma opinião sobre você?
Lembrando Raul. E se eu quiser dizer (ou fazer) o oposto do que eu disse (ou
fiz) antes? Estarei amarrado à responsabilidade de conservar o outro ainda
encantado comigo? Isso não cheira a uma armadilha?
A palavra
“eternamente”, percebi, me dá urticária. Sim, eu dou o desconto da licença
poética, mas continuo achando-a muito pesada para criaturas datadas e cheias de
finitude como nós. O que quer dizer “responsável” na frase? Parece não haver
saída que não admitir seu significado direto: alguém que é capaz de responder
por seus próprios atos ou pelas ações de outras pessoas.
Responder por si, mesmo
quando se quer desdizer o que se disse antes, é um belo desafio e um símbolo de
autonomia e certa liberdade íntima. Ser responsável pelo o que os outros fazem,
nem com procuração! É um peso grande demais.
Talvez Exupéry quisesse
dizer que quando cativamos alguém, irmanamo-nos com ela. Essa quase
identificação sugere mais uma responsabilidade nossa que do cativado. Ou queria
dizer que devemos ser responsáveis por aquilo que fazemos e dizemos, pois cada um
teria o poder de influenciar os outros. Imagine usar este poder para cativar
pessoas e levá-las para o mau caminho. Por que elas iriam? Por que são
criaturas de mentes simples e sem referencial. Talvez carentes como a raposa
que está cansada da vida monótona que leva.
Haveria diferença entre
cativar de propósito, donde a palavra seduzir estaria mais adequada, e cativar
pelo jeito de ser, pelo carisma pessoal? O primeiro pode conduzir a um tipo de
dominação, carrega uma intencionalidade nem sempre honesta. O segundo seria
espontâneo, pois o cativado foi atraído porque nele mesmo já estaria a
identificação com quem o cativou.
Você pode aceitar a frase sem prensar em suas sutis
implicações, seus pedidos de explicação ou repensá-la assim: Sou responsável
por aqueles que cativo, mas sou livre e os deixo livres para partir e buscarem
outros encantos onde desejarem e não tenho obrigação de satisfazê-los em suas
expectativas sobre mim. Sei, perdeu a poesia, encardiu-se de realidade,
diminuiu o efeito encantador, talvez porque em plena guerra, Exupéry quisesse
apenas que seus leitores sonhassem um pouco, a realidade era cruel demais para
aguentar. Talvez ainda seja.
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