sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Biutiful


Biutiful não é um filme para se gostar. É um soco no estômago. É um autêntico Alejandro González Iñárritu. Os mesmos temas de Babel e 21 gramas são revisitados, mas com uma visceralidade muito maior, como se estes dois fossem um ensaio.
Se eu tivesse de lamentar por algo da experiência que é assistir Biutiful, é pela escuridão de Barcelona que é uma cidade iluminada. A história está inteira engolfada por uma luz indecisa, de modo que é difícil saber se amanhece ou se anoitece. Um único momento de luz, não sei se proposital, é quando os irmãos voltam do crematório onde foram cremar os restos mortais do pai que eles não conheceram sequer de vista.
Uxbal (Javier Bardem) é um ser perdido que tal como a penumbra que ambienta o filme, vive num limbo da ilegalidade. Ele é parte de uma cadeia de exploradores e explorados. Esta mistura monumental que a facilidade de deslocamento e comunicação do mundo globalizado produz, gera uma infinidade de apátridas, sobreviventes, seres subterrâneos que não existem para ninguém.
Sozinho, Uxbal sustenta dois filhos pequenos e faz o que é preciso para isso. Por esta causa, a sinopse nos induz a erro. O filme não trata apenas disso. Mas de muito temas e destinos que se entrelaçam de forma irremediável numa aridez de afeto, respeito e dignidade humana. Os chineses são os grandes fornecedores de qualquer coisa, inclusive de gente. Os africanos esgueiram-se entre a polícia que os persegue sem trégua, a vida pobre e a tenacidade de aguentar qualquer coisa pela sobrevivência tão somente porque na África que deixaram para trás é muito pior. Os europeus mediam os chineses e exploram os africanos. Os chineses exploram os seus como só eles sabem fazer.
A sensação é de um moto contínuo de vidas que acordam às 6:30 da manhã, trabalham 14, 16 horas por dia e voltam para seu calabouço para dormir. Sujeitam-se por causa do desamparo. Uxbal, que aparentemente é livre, guarda em algum lugar de si uma alma que, a seu modo, tenta cuidar daqueles dos quais sobrevive. Ele tem uma espécie de dom. Fala com mortos e cobra por isso. Uma possível leitura sugere que a espiritualidade, representada de forma mais plena por Bea, amiga de Uxbal, seja uma saída para humanizar o mundo. É dela a frase que um dom recebido de graça não pode ser cobrado. É contudo, uma espiritualidade sem Deus, sem céu, quer dizer, sem esperança de qualquer forma. Os mortos só precisam de ajuda na passagem, trabalho que Uxbal realiza umas poucas vezes e só.
Não há riso neste filme, tampopuco beleza, eis a ironia com o título, propositalmente escrito errado indicando uma não beleza, um vazio de formas e conteúdo porque as pessoas são como cascas andantes. A refeição do chinês que está no topo desta cadeia de devoradores não dá qualquer pista de família feliz. Ao contrário, comem como se fossem partir rápido. E no meio desta intimidade invade porta adentro seu amante, apenas mais um elemento desconexo, parasita do parasita.
Como tudo que está ruim pode piorar no mundo de Iñárritu, Uxbal descobre um câncer em estado terminal. Um homem que tem intimidade com a morte – dos outros – não quer morrer. Por nenhum motivo nobre, apenas sofre por não saber o destino dos filhos e de repetir o que sofreu com o pai ausente. Eis aí um salto minúsculo para uma eternidade que chama dentro de cada ser humano a despeito da desconstrução nanométrica a que somos submetidos. Novamente, a espiritualizada Bea tem uma frase de efeito: o universo cuidará deles. Não sem antes questionar a pretensão de Uxbal que julga ele cuidar dos filhos.
Biutiful mostra um mundo sem perdão, reconcliação e com escassas possibilidades de redenção. Uxbal, que se preocupa com o frio pelo qual passam seus explorados chineses, agora não mais escravos da máquina de costura, mas da construção civil, compra aquecedores. Um porão sem ventilação, um escapamento de gás e vinte e cinco mortos. De quem é a culpa? De ninguém e de todos. Se isto é possível.
O fim. Uxbal, que havia acolhido uma africana imigrante cujo marido fora deportado, tem nela sua tábua de salvação. Para cuidar de seus últimos dias e dos filhos, já que sua ex-esposa está internada em mais uma crise de loucura e drogas. Em seus momentos fatais, ele se vê numa família fruto deste grande acaso misturado às pequenas escolhas que fazemos. A africana imigrante ilegal será mãe de seus filhos e ele parte para encontrar seu pai que nunca conhecera. Parece que, para Iñárritu, apenas neste mundo improvável há alguma possibilidade de paz.

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