domingo, 2 de agosto de 2015

Mortais

“Mortais” não é o que pensei que fosse. Não decepcionou propriamente. O título sugeriu a mim uma viagem mais poético-filosófica sobre esta ligeira condição humana. Sua leitura, naquela toada da minha compreensão, seria mais um deleite, a descoberta de perspectivas novas sobre a morte. Foi uma espécie de coincidência. Em minha agenda, havia uma aula sobre luto, então, perambulando pela livraria, deparei-me com “Mortais”, o que vinha a calhar com o momento.

Curioso é que a aula veio e foi e não dei uma única palavra sobre o livro aos alunos. É que fui, suspeito agora, excessivamente didático com o tema luto e ainda que o livro não abordasse a morte pelo ângulo que eu imaginei, tampouco cabia na aula. Ou cabia, eu é que não o havia digerido. Como quando uma destas cobras constritoras comem. Leva tempo para – nem tanto assim, diz a ciência – reduzir a nada pele, cascos, chifres e ossos.
Atul Gawande, autor de “Mortais”, é um cirurgião americano de origem indiana. Premiado e renomado em sua profissão, atreve-se a ver os pacientes, todos os descritos em estado terminal, de uma forma, para usar um termo clichê, humana. Gawande passa longe da arrogância e onipotência semidivina dos cirurgiões. 

É claro que ele fez pesquisa, entrevistou pessoas, mas é também um pouco o relato de sua própria trajetória profissional. Ou da mudança que ela sofreu. Na primeira parte, ele avalia e descreve a situação de envelhecimento e a cultura política de saúde americana para as pessoas nessa faixa etária. Nos EUA, os idosos vivem independentes por muito tempo até que doenças e as consequências do envelhecimento os empurram para asilos. Segundo Gawande, é um modelo que tem se renovado para melhor, se bem entendi. Deixa de ser um depósito de velhos com regras estritas a bem de sua segurança e saúde ou aquilo que restou dela, para ambientes com maior liberdade e autonomia possível para seus residentes. 

O autor relata o drama familiar, privilegiando o ponto de vista daquele que envelhece. De forma marginal, mas não menos importante, dos parentes mais jovens, em particular os filhos. Os asilos vem sofrendo pressão por sua humanização com novas abordagens denominadas “residências assistidas”. A expressão define bem a diferença. Nestes lugares os idosos têm espaços próprios e a liberdade de receber pessoas e até de possuir bichos de estimação. Os custos não são baratos, mas há espaços para receber pessoas idosas nos mais diversos formatos. Desde os totalmente particulares até aqueles que são iniciativas de instituições de caridade. A grande maioria recebe subvenção do estado.

A segunda metade do livro, Gawande dedica à terminalidade e suas difíceis implicações relacionais, clínicas – estas ele descreve com bastante clareza como médico que é – e as conversas e decisões difíceis que este momento exige. Quase todos os relatos mostram personagens com cânceres incuráveis e numa condição quase intratável, inclusive a história do próprio pai do autor. Será que não há mais nada a fazer, exceto esperar o desfecho fatal? Gawande diz um sonoro “não”. Há muito a ser feito e aqui ele discute o momento – que exigirá coragem e sabedoria – de saber parar com o tratamento que, nestas condições, quase sempre produz mais dor e desamparo do que bem-estar. 

O médico, sem fazer proselitismo, ou diminuir as conquistas que a medicina nos proporcionou frente a tantos males, defende os cuidados paliativos com inúmeros exemplos de superação dos pacientes, inclusive do tempo de vida que lhes foi determinado. E o melhor de tudo, com qualidade de vida. Por suposto, dentro das condições periclitantes que viveram. De qualquer modo, morrer com dignidade e tendo a chance de se despedir, dar orientações, lições, expressar desejos, não tem nada de mórbido. Em meio à tristeza, tanto os que partem como os que ficam, são beneficiados. No final, o livro ensina humildade que, nas palavras de Atul Gawande, se expressa assim: “Às vezes podemos oferecer cura, às vezes apenas alívio, outras vezes nem isso.” Em toda e qualquer condição das mencionadas, explica o cirurgião, “só se justificam se atendem às metas maiores de vida da pessoa. Quando nos esquecemos disso, podemos infligir um sofrimento bárbaro. Quando nos lembramos, podemos fazer um bem enorme.”

Mortais. Ed. Objetiva, 259 p.

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