Talvez você não saiba, mas há nada menos que 454 formas de ser
multado no trânsito do Brasil. Embora não seja comum que isso
ocorra, até pedestre pode ser multado.
Fonte: Folha de São Paulo (Cotidiano, 07/08/2015)
Domingo, dia dos pais, eu não tinha muito o que fazer além de
esperar ser lembrado pelos meus filhos. Um apressadinho, em plena
sexta-feira, já tinha me dado um cartão que ele mesmo denominou de
“cartãozim véi”, que a escola, segundo também sua abalizada
avaliação, fez porque queria gastar o mínimo possível. Menos mal
que o cartãozim foi preenchido com algumas doces palavras que
guardarei com carinho inestimável e que finalizava com um “xêro
nos zói” que acho que vou dispensar.
Passeando os zói pelos jornais deparo-me com uma notícia
espantosa, posto que minha ignorância desconhecia completamente, daí
o susto. Há 454 formas de um motorista no Brasil ser multado. Um
disparate. Um despropósito. Descobri assim, quase numa espécie de
iluminação, o que é que fazem o tempo inteiro os burocratas do
Contran: engordam o CTB com todo tipo imaginável de multa. Evidente
que defendem esta desmesura, alegando a segurança sua e minha, dos
bichos, das borboletas, das flores e sei lá mais o quê.
A notícia se prestava a elencar todas as multas e convidava o
leitor a lê-las. Sim, no domingo dos pais, embora a notícia fosse
da sexta. Eu entendi que o convite era para mim. Meio autômato,
comecei a seguir a tal lista que começava com a mais popular nos
noticiosos e que já pegou no ato, de freira ao Aécio Neves: dirigir
sob efeito de álcool. E a coisa se espichava sem fim. Parece que
estão numa competição para atingir quinhentas variações de
multas.
Uma notícia dessa mexe com a pessoa. Eu que tenho cá comigo minhas
manias e cismas no trânsito, fui ficando entre indignado e
amedrontado à medida que lia. Não só me reforçou uma
idiossincrasia, como me lembrou meus próprios erros, alguns dos
quais imaginava serem coisas inofensivas. Reclamo das demências
atrás da direção, que fazem todo tipo de insanidade ao dirigir, a
começar por não dar o sinal de que fará, como dizem os pedantes
instrutores de trânsito, uma conversão à esquerda ou direita.
Simplesmente fazem isso quando dão na veneta. Azar o seu que não
sabe adivinhar.
Descubro quase sem me conter, não digo de alegria, mas de alguém
que deseja cumprir seu dever cívico neste momento cataclísmico pelo
qual passa a economia, que a solução da bancarrota do país não
está em medidas de arrocho já em curso e tentativas debalde de
conter uma inflação que mais parece um dragão com o temperamento
do finado touro bandido. Eis a solucionática. Basta aplicar todas as
multas. De certo que seria deveras trabalhoso, mas valeria a pena.
Afinal se trata de arrancar a nação da latrina onde o PT a enfiou.
Acho que ninguém choraria se ele fosse discretamente esquecido lá
dentro. O governo quase descobriu minha ideia revolucionária:
aumentou o valor das multas, mas ficou nisso.
Mas hoje é dia dos pais. Será que eu não deveria escolher um
assunto melhor? Mas pai e trânsito tem tudo a ver. Tenho ricas e
inesquecíveis lembranças do trânsito com minha creche. Boa parte
dos pais levam seus rebentos para a escola e neste trajeto todo tipo
de história acontece. De pneu furado justo no dia de prova, a
enfrentar inundações em chuvas torrenciais. Riso e dores de
barriga. Cochiladas e maus humores. Os meninos, ainda pequenos, um
dia resolveram me imitar. Girando a direção para lá e para cá
diziam: anda anta! Sai da frente seu bucéfalo anômalo! Vai jumento!
Olha, o cavalo não deu o sinal de que iria virar a esquina. Me vi
num espelho. Haveria multa por reclamar dos demais motoristas
displicentes? Fui ver na lista. Esta infração eles não
contemplavam, menos mal.
Mas voltando ao tema. Não tem quem não se sinta paranoico depois
de ler a lista. Não é exagero que um se pegue refazendo os passos
desde que abriu a porta do carro. Não vi, mas acho que até ao abrir
a porta de certa maneira cabe multa. Ao sentar no veículo, peguei-me
acomodando-me ao banco com todo cuidado. E a forma de colocar o
cinto? Pegar na direção? Pode-se mascar chiclete sem incorrer em
erro ou distração passível de multa? A verdade é que me entediei
e não fui até o final, pois a levar a sério o convite inoportuno,
passaria todo o domingo agarrado ao jornal com perigo de bater a
biela de cansaço ou susto.
Na tentativa de maximizar e dar produtividade à industriosa ação
de multar, o governo lança mão da tecnologia. Desconheço quem não
tem verdadeira fobia ou ódio consumado aos pardais. Uma praga.
Aliás, quem deu nome de passarinho às câmeras dedo-duro? Estas
rainhas da delação premiada. Se são daquelas anônimas, com seus
olhos de falcão olhando fixo na mesma direção, apenas reduzimos a
velocidade e torcemos para não ter ultrapassado o limite imposto.
Mas se há os painéis que indicam a velocidade, há uns segundos de
suspense entre passar pelos riscos no asfalto que captam quão veloz
se está até aparecerem os números fatais. Estes segundos são
eternos e um só tem alívio quando constata que não ultrapassou a
velocidade permitida.
Agora, existe uma traquinagem ótima. Uma sensação de adrenalina e
capetice. Passar rápido na lombada eletrônica quando as luzes
enlouquecem e não são capazes de registrar nada por falta de
manutenção. Ou quando se está com o carro sem placa. Não é
maldade, é como se vencêssemos nosso inimigo invisível que nos
impõe tanta regra e mete a mão no nosso bolso sem dó nem piedade
quando infracionamos. Por certo, não advogo o vale-tudo no trânsito,
assim nos tornaríamos uma Índia sem as vacas nas ruas ou uma Cairo
com seus insanos buzinando o tempo todo.
Afinal, hoje é dia dos pais e eu deveria ter sido mais amável e
falado do amor entre pais e filhos e não atormentar aos genitores e
bacurins com 454 formas em que o governo pode lhe pegar no trânsito.
Uma pequena maldade, reconheço. Talvez ninguém precise decorar
lista de multas, nem lê-las. Mas todos podemos abraçar
e honrar aquele que nos gerou com a alegria que só os filhos podem
fazer. Feliz dia dos pais.
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