domingo, 9 de agosto de 2015

Pais sobre rodas

Talvez você não saiba, mas há nada menos que 454 formas de ser multado no trânsito do Brasil. Embora não seja comum que isso ocorra, até pedestre pode ser multado.
 
Fonte: Folha de São Paulo (Cotidiano, 07/08/2015)

Domingo, dia dos pais, eu não tinha muito o que fazer além de esperar ser lembrado pelos meus filhos. Um apressadinho, em plena sexta-feira, já tinha me dado um cartão que ele mesmo denominou de “cartãozim véi”, que a escola, segundo também sua abalizada avaliação, fez porque queria gastar o mínimo possível. Menos mal que o cartãozim foi preenchido com algumas doces palavras que guardarei com carinho inestimável e que finalizava com um “xêro nos zói” que acho que vou dispensar.
Passeando os zói pelos jornais deparo-me com uma notícia espantosa, posto que minha ignorância desconhecia completamente, daí o susto. Há 454 formas de um motorista no Brasil ser multado. Um disparate. Um despropósito. Descobri assim, quase numa espécie de iluminação, o que é que fazem o tempo inteiro os burocratas do Contran: engordam o CTB com todo tipo imaginável de multa. Evidente que defendem esta desmesura, alegando a segurança sua e minha, dos bichos, das borboletas, das flores e sei lá mais o quê.
A notícia se prestava a elencar todas as multas e convidava o leitor a lê-las. Sim, no domingo dos pais, embora a notícia fosse da sexta. Eu entendi que o convite era para mim. Meio autômato, comecei a seguir a tal lista que começava com a mais popular nos noticiosos e que já pegou no ato, de freira ao Aécio Neves: dirigir sob efeito de álcool. E a coisa se espichava sem fim. Parece que estão numa competição para atingir quinhentas variações de multas.
Uma notícia dessa mexe com a pessoa. Eu que tenho cá comigo minhas manias e cismas no trânsito, fui ficando entre indignado e amedrontado à medida que lia. Não só me reforçou uma idiossincrasia, como me lembrou meus próprios erros, alguns dos quais imaginava serem coisas inofensivas. Reclamo das demências atrás da direção, que fazem todo tipo de insanidade ao dirigir, a começar por não dar o sinal de que fará, como dizem os pedantes instrutores de trânsito, uma conversão à esquerda ou direita. Simplesmente fazem isso quando dão na veneta. Azar o seu que não sabe adivinhar.
Descubro quase sem me conter, não digo de alegria, mas de alguém que deseja cumprir seu dever cívico neste momento cataclísmico pelo qual passa a economia, que a solução da bancarrota do país não está em medidas de arrocho já em curso e tentativas debalde de conter uma inflação que mais parece um dragão com o temperamento do finado touro bandido. Eis a solucionática. Basta aplicar todas as multas. De certo que seria deveras trabalhoso, mas valeria a pena. Afinal se trata de arrancar a nação da latrina onde o PT a enfiou. Acho que ninguém choraria se ele fosse discretamente esquecido lá dentro. O governo quase descobriu minha ideia revolucionária: aumentou o valor das multas, mas ficou nisso.
Mas hoje é dia dos pais. Será que eu não deveria escolher um assunto melhor? Mas pai e trânsito tem tudo a ver. Tenho ricas e inesquecíveis lembranças do trânsito com minha creche. Boa parte dos pais levam seus rebentos para a escola e neste trajeto todo tipo de história acontece. De pneu furado justo no dia de prova, a enfrentar inundações em chuvas torrenciais. Riso e dores de barriga. Cochiladas e maus humores. Os meninos, ainda pequenos, um dia resolveram me imitar. Girando a direção para lá e para cá diziam: anda anta! Sai da frente seu bucéfalo anômalo! Vai jumento! Olha, o cavalo não deu o sinal de que iria virar a esquina. Me vi num espelho. Haveria multa por reclamar dos demais motoristas displicentes? Fui ver na lista. Esta infração eles não contemplavam, menos mal.
Mas voltando ao tema. Não tem quem não se sinta paranoico depois de ler a lista. Não é exagero que um se pegue refazendo os passos desde que abriu a porta do carro. Não vi, mas acho que até ao abrir a porta de certa maneira cabe multa. Ao sentar no veículo, peguei-me acomodando-me ao banco com todo cuidado. E a forma de colocar o cinto? Pegar na direção? Pode-se mascar chiclete sem incorrer em erro ou distração passível de multa? A verdade é que me entediei e não fui até o final, pois a levar a sério o convite inoportuno, passaria todo o domingo agarrado ao jornal com perigo de bater a biela de cansaço ou susto.
Na tentativa de maximizar e dar produtividade à industriosa ação de multar, o governo lança mão da tecnologia. Desconheço quem não tem verdadeira fobia ou ódio consumado aos pardais. Uma praga. Aliás, quem deu nome de passarinho às câmeras dedo-duro? Estas rainhas da delação premiada. Se são daquelas anônimas, com seus olhos de falcão olhando fixo na mesma direção, apenas reduzimos a velocidade e torcemos para não ter ultrapassado o limite imposto. Mas se há os painéis que indicam a velocidade, há uns segundos de suspense entre passar pelos riscos no asfalto que captam quão veloz se está até aparecerem os números fatais. Estes segundos são eternos e um só tem alívio quando constata que não ultrapassou a velocidade permitida.
Agora, existe uma traquinagem ótima. Uma sensação de adrenalina e capetice. Passar rápido na lombada eletrônica quando as luzes enlouquecem e não são capazes de registrar nada por falta de manutenção. Ou quando se está com o carro sem placa. Não é maldade, é como se vencêssemos nosso inimigo invisível que nos impõe tanta regra e mete a mão no nosso bolso sem dó nem piedade quando infracionamos. Por certo, não advogo o vale-tudo no trânsito, assim nos tornaríamos uma Índia sem as vacas nas ruas ou uma Cairo com seus insanos buzinando o tempo todo.
Afinal, hoje é dia dos pais e eu deveria ter sido mais amável e falado do amor entre pais e filhos e não atormentar aos genitores e bacurins com 454 formas em que o governo pode lhe pegar no trânsito. Uma pequena maldade, reconheço. Talvez ninguém precise decorar lista de multas, nem lê-las. Mas todos podemos abraçar e honrar aquele que nos gerou com a alegria que só os filhos podem fazer. Feliz dia dos pais.

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