quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Não sou má pessoa

“Estou arrependido. Também não sou uma má pessoa. E o senhor [Ruas] que estava lá trabalhando também não era, era um cidadão de bem”, disse a jornalistas.

O incrível nessa frase é o aparente constrangimento que ela revela. Seu autor parece preocupado com sua imagem ante um ato errado que cometera. A opinião dos outros, de algum modo, ganhou um peso e importância que ele se vê premido a dizer que, a despeito de seu erro, não é alguém ruim. É como se, repentinamente, ele tivesse entrado em contato com uma versão de si mesmo que é horrenda e estranha a ele mesmo.
Espantado com o que se depara, se vale de uma maquiagem verbal. Ele fala de forma maquinal como se estivesse ausente e repetisse aquilo porque se lhe perguntam. Ele tem consciência do que fez, mas só ali preso, no mostruário dos olhares incriminadores, mirado por câmeras e microfones, se tornou real e aterrador como se o demônio tivesse saído da caixa e agora mostrasse toda sua feiúra.
Ele justifica o morto. Ensaia a defesa de sua honra e inocência. De alguma forma isso ameniza seu crime bestial. Algo nele se irmana com o assassinado. Ele ensaia uma igualdade que os coloca a ambos como homens de bem, o que só torna sua declaração ainda mais chocante e espantosa. Parte dele agride, outra parte morre. É essa parte morta que pede clemência. Que tenta minimizar. Que se desorienta por não saber juntar os dois lados.
Seu olhar perdido procura um ponto de apoio, mas vagueia para lá e para cá nas dezenas de rostos que vão de curiosos a hostis, de sádicos a ameaçadores. A realidade cruel se infiltra agora em toda sua dureza na alma atormentada do assassino. É um bicho enjaulado. Seu cérebro pensa mil formas de escapar, mas é inútil. Dizer que não é má pessoa é uma louca defesa. Não faz qualquer sentido, mas nem precisa. No momento é tudo que tem, embora a verdade fria e afiada como uma katana lhe deixe nu ante a multidão.
É impressionante que ele se preocupe como sua boa fama, a reputação que, sendo miserável e banal, nunca valeu grande coisa. Cada qual carrega uma autoimagem de si e tendemos a ser autoindulgentes com ela. No fim é tudo que se tem e é também um ponto de partida de nós que caminha em direção ao outro ou se manifesta em meio à massa de gente. Esta aparência interna diz quem se é, diferente do outro, reconhecível por algum valor, por roto que seja.
A autoimagem, por disforme que seja, explica uma unidade, mesmo remendada com fita adesiva vagabunda que, não conseguindo prender suficientemente as partes que bambeiam, ameaça romper-se ao mero esforço e abrir a rotura. Muita gente se arrasta por aí mal ajambrada, sabe-se quase nada, percebe-se menos ainda. É o que é num amontoado de instintos, cada um gritando por satisfação. Precisam acontecer hecatombes, um armagedom particular para despertar.
Pessoas assim vivem a mínimos de distância de desastres. Alguém indicou que o assassino descobrira uma traição da mulher naquele dia fatídico, daí a explosão de monstro captada na câmera da estação do metrô. Disse que não justifica a carnificina de um só, o vendedor.  Pelo jeito, queria achar uma explicação para a selvageria, posto que não se encaixa em nenhum parâmetro de normalidade.  Assim, o assassino parece mais humano. Pode-se concluir que qualquer um faria igual. As bestas-feras em nós, no entanto, são alimentadas do nada, do vazio de bem, da falta de coisas elevadas. Elas se reduzem à carne e seu frêmito. Daí porque suas reações tem a assinatura da insanidade.
Recuso a mínima insinuação de que qualquer um poderia realizar a barbárie como se fosse algo que nos escapole sem controle. Bastaria alguém acender o estopim. Esconder os assassinos na pobreza ou miséria é outra saída infeliz. Também pobre, de onde o vendedor tiraria a coragem, a empatia, para defender um travesti morador de rua? Os mecanismos anti-bestafera existem, apenas se tornam eclipsados num mundo frio, individualista e indiferente.
Mais que medo, havia um espanto no olhar do assassino. Um quê de incredulidade. Só agora percebia o sangue nas mãos, o corpo estendido inerte como um molambo usado. Será que se perguntou alguma vez: como pude fazer aquilo?

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