terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A pele que habito


Richard Ledgard (Antonio Banderas) é um cirurgião plástico de incrível habilidade. Rico e bem sucedido, também é um gênio. Carrega, contudo uma história pessoal trágica. A mulher que amava, o traía com o meio irmão que é seu oposto em tudo: marginal, mau caráter, ladrão sem escrúpulos.
A mulher que escapa de morrer carbonizada num acidente de carro, deprime-se a ponto de suicidar-se. As dores  e a mutilação que não foi capaz de curar deixa em Ledgard um misto de culpa e obstinação por descobrir uma pele imune ao fogo, picadas e danos, algo que teria salvo sua esposa. O avanço tecnológico, inclusive a travessia do limite – a transgênese –, não vem sem quebrar todos os protocolos éticos e morais que deveria seguir como médico e cientista.
A filha, traumatizada pela morte da mãe, desenvolve transtornos mentais que a levam a anos de tratamento. Quando tudo parece caminhar para uma estabilidade, a moça que a vida inteira foi protegida do mundo e sem qualquer imunidade às experiências humanas, sucumbe a uma quase relação que não se consuma e o fio de sanidade que a mantinha se quebra.
Ledgard, o homem obcecado pelas perdas e dores nunca curadas de sua alma perdida, estabelece um plano. Uma cobaia humana para finalizar sua descoberta, uma vingança pela perda da filha, a ressurreição da mulher amada.
Almodóvar, até aqui, brinca conosco. Monta a história. Como um malabarista, brinca com o tempo, a ordem dos fatos. Joga pistas como quem atira milho aos pombos numa praça. E buscamos ávidos, entretecer as linhas, costurar os personagens entre si e na história. Ao mesmo tempo em que vamos sendo socados com a crueza da narrativa que se revela surpreendente e absurda com é a vida.
Richard é uma vaga mistura do médico e o monstro. Um Frankestein redivivo, à sua maneira. Todos queremos consertar o que desmantelamos por burrice, raiva, por amor, inveja e tudo o que explica nossos atos tresloucados se tivéssemos chance. Deste labirinto, se vamos longe o suficiente, não haverá saída, nem com o mestre das chaves. Sem que perceba, Legard terá sua paixão transformada em loucura e ambas são feitas da mesma matéria.
Descoberto o culpado pela perda da filha, há que fazê-lo pagar. Todo prisioneiro desenvolve, nas condições adequadas, amor pelo captor. Ao fenômeno se dá o nome de Síndrome de Estocolmo. A condição humana, na maioria das pessoas, pede o contato, a fala, o olhar de outro ser humano. Se o aprisionador é o único igual a quem a vítima tem, segue-se um sentimento de afeição.
O personagem de Ledgard parece saber disso para melhor dominar seu prisioneiro, não mais com correntes, mas pelo emoção e pela mente. Cada pequena concessão parece uma dádiva para quem recebe. Ao fim e ao cabo, os dois lados das grades estão tão envolvidos que não sabem mais o que os une. As emoções são retalhos misturados que causam repulsa e atração. Nunca estaremos imunes à convivência uns com os outros, para o bem ou para o mal. Almodóvar parece dizer que mesmo transformados da maneira mais radical, sempre saberemos quem somos por debaixo da pele. Pode, acaso, o etíope mudar a sua pele ou o leopardo, as suas manchas?” Pergunta Jeremias, o profeta das lágrimas.
Há um estado perfeito do que somos ou do que entendemos ser, que jamais poderá ser mudado. A grande dificuldade de todos nós é conhecer quem somos. Nossas neuroses e psicoses são fruto da incongruência, pensava Carl Rogers. Vivemos com o que dizem de nós, máscaras falsas, ou pior ainda, com o que esperam de nós, a escravidão mais sutil e cruel. Estamos perdidos entre os dois. 
Almodóvar sabe disso. Seu filme é uma pedra com muitos lados a serem decifrados, tais quais os personagens. Brutalmente humanos. Ambíguos. Indecifráveis se os olhamos rapidamente, menos ainda se tentamos montá-los. Carregam o bem e o mal. Há em nós há um eco da fala serpentiforme: “...como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.” A serpente nunca pretendeu que “conhecer” fosse algo apenas a expressão do intelecto, mas da experiência.

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