segunda-feira, 22 de março de 2010

A cobiça dos pés

Na Coreia do Sul, onde é costume tirar os sapatos antes de entrar em casas, restaurantes ou agências funerárias, um problema se tornou comum: as pessoas vão embora com os sapatos de outras, seja por engano ou, às vezes, intencionalmente.


Mas o detetive Kim Jeong-gu ficou de queixo caído recentemente, quando abriu o armazém de um ex-presidiário em Seul e encontrou 170 caixotes de frutas contendo 1.700 pares de sapatos de grife, organizados por tamanho e marca, e todos teriam sido roubados.
Fonte: Folha de S. Paulo/The New York Times

Seul, 21 de março de 2010.
Prezados amigos e parentes,
Desculpem pelo vexame que os fiz passar. Preso, tive tempo de refletir e estou envergonhado. Perdoem-me se os desonrei. Vocês tem todo direito de não quererem se associar a mim em qualquer circunstância, inclusive, devido ao rumoroso que se tornou meu caso. Sei que a imprensa os está procurando para montar meu perfil. As piores coisas têm sido ditas a meu respeito, só não aceito a classificação de louco nem que me chamem de pés cobiçosos. Portanto, eu os autorizo a negar que me conheceram até na escola primária.
Meus vizinhos podem negar que eu morei em sua rua e seu prédio. Acho que assim vocês estarão livres de mais este aborrecimento. Por outro lado, se alguns de vocês quiserem falar aquelas coisas de praxe, fingindo admiração ou estupor, podem fazê-lo. Sei que alguns vão gostar de sair no jornal ou na televisão.
Como vocês sabem, nunca fui muita coisa. Que posso dizer? Sou um bosta. Meu melhor emprego foi naquela sapataria de sapatos usados. Ali começou meu fascínio – guardem esta palavra – por sapatos. Posso dizer que em toda Coréia e quiçá no mundo, não tem alguém que entenda mais de sapato que eu. Até um Zé Ninguém tem algum talento.
Mas vocês sabem, a loja estava mais para uma quitanda vagabunda. Imagine, vender sapatos usados. Mas havia alguma freguesia. Um homem, porém, tinha bom gosto, fora rico e conhecia o produto. Perguntava por marcas mais refinadas que eu, na minha bruta ignorância, desconhecia. Pensei: eis aí uma oportunidade de vender mais e quem sabe, montar minha própria loja. Num país que é cultura deixar os sapatos do lado de fora de quanto é canto, eu estava feito. Foi ganância, meus amigos.
Quantas vezes não se calça o sapato alheio sem querer? Explorei este engano tão comum entre nós. Eu dizia a mim mesmo, nos primeiros “enganos” que cometi, que eram isso mesmo, enganos. Meu cliente ficava satisfeito. Eu passei a traficar sapatos pra ele que ficava feliz e até indicava novos clientes, quebrados iguais a ele, que não podiam comprar novos, mas que ainda apreciavam produtos de qualidade.
Quando dei por mim era especialista, mas também desenvolvi o gosto por calçá-los eu mesmo. Logo, já não entregava os sapatos aos meus receptadores e fui montando uma coleção que, modestamente, chegou a 1.700 pares. Sabe lá o que é botar o pé num Oxford? Um Gucci verdadeiro? Um cromo alemão? Passava noites inteiras no depósito calçando-os, desfilando para mim mesmo.
Não, não senhores, eu os envergonhei, é verdade, mas o nome para isso não é roubo, esta coisa baixa e banal. Considero-me um gourmet de sapatos. Nem se diga a inebriante sensação de calçar um Manolo. Entonado num deles, eu sou o cara.
Reconheço que parece nojento apropriar-me de sapatos em velórios, mas nestas mega organizações de lamento de mortos existem salas como se fossem um shopping e vocês não acreditariam como as pessoas vão bem calçadas. Isso é uma incógnita para mim. Fui pego no ato, que fazer? Depois de três “enganos” que pratiquei. Aquilo estava uma festa, se me permitem o humor negro.
Que mais posso dizer? Sou tarado por sapatos. Como diriam os americanos: um addicted to shoes. Desenvolvi uma sapatofilia. Assumo: sou sapatófilo. Dou meu mindinho por um Prada que até o Papa calça. Naquele pequeno instante sou rico, bonito, feliz e, não me desculpo por isso, um homem de profundo bom gosto. Sou estou preocupado é que agora dei para ter admiração por salto alto, não sei que farei com minha labirintite.
Kim Kuong

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