Estava no escritório sozinho. Esperava a pessoa com quem falaria. Numa parede havia um crucifixo grande, cruz de madeira e um cristo crucificado bastante realista, feito de um material que parecia cerâmica. O corpo era bem torneado e fora os ferimentos óbvios dos pregos e coroa de espinhos, pecou o artista por pouco realismo no restante do corpo. Na verdade, a tinta que representava o sangue estava meio desbotada.
A cabeça pendia para um lado. Os olhos eram fixos e não demonstravam qualquer sofrimento. De quando em vez nossos olhares se cruzavam. O meu de tédio pela espera, o dele não sei que diga. A boca entreaberta trazia um grito mudo ou seria uma fala que não chegou a ser dita?
Notei que havia uns pequenos respingos de tinta branca na barriga, braços e pernas. O cristo era um sobrevivente de alguma reforma, talvez noutra sala, antes de emoldurar aquela parede.
De repente a porta se abre e entra uma daquelas pessoas invisíveis que limpam os prédios, recolhem bandejas em praças de alimentação, juntam nosso lixo, varrem nossas ruas. Em silêncio, o homem que não me deu bom dia ou fez qualquer outro sinal de urbanidade, mais por timidez, penso, colocou seus apetrechos num canto e começou a se preparar para a limpeza do local.
Sacou um tipo de detergente e umedeceu um pano. Sem cerimônia, atacou o cristo que, inerte, não protestou. Esfregou-o vigorosamente para cima e para baixo. Tentou, num momento, limpar o rosto, como quem tira uma remela seca teimosa do canto dos olhos. Demorou-se pouco no serviço e foi adiante limpar a mesa com seus apetrechos eletrônicos. As manchas de tinta ficaram e nenhum dos dois se incomodou, mas eu quis ir lá e livrar o cristo da tinta, pareceu-me um desrespeito. Depois, o homem invisível atacou uma mesinha e do mesmo modo, sem qualquer reverência, esfregou uma Nossa Senhora Aparecida em miniatura e uma outra Nossa Senhora de igual tamanho que me escapa totalmente a designação.
Depois de limpar a sala, foi ao banheiro contíguo. E, por fim, uma boa varrida no chão, quando então, antes que me dispusesse a sair do lugar onde estava – uma mesa de reunião –, ele sugeriu que o sofá seria mais confortável, ao que obedeci sem mais palavras. Terminado seu trabalho disse-lhe um muito obrigado, ele agradeceu e se foi. O cristo assistiu a tudo em silêncio, como é de se esperar e ficamos nós dois lá sozinhos, cada qual em sua solidão.
Enquanto pensava sobre a cena de um cristo sendo esfregado, ocorreu-me uma ideia estapafúrdia. Será que meu Cristo pessoal não precisava também ser esfregado? Quero dizer, o Cristo que creio ou construí a partir de minhas próprias hermenêuticas e experiências pessoais era mais verdadeiro que aquele que me encarava e a quem queria esgravatar a tinta?
Embebido naqueles pensamentos, tentei imaginar em quem creio. Que artífice influenciou a minha certeza de fé? Que molde tem meu Cristo por quem tenho sentimentos de amigo sem intimidade? Por que ele permanece, não poucas vezes, com uma palavra atravessada na garganta enquanto eu espicho o ouvido para ouvi-Lo? Quanto de minhas certezas são apenas miméticas com a verdade sobre Ele que sempre confundia tanto detratores como seguidores?
Imagino alguém desejando me mostrar o bom caminho, pois certamente estarei em crise de fé ou a perdi por algum recanto onde as letras nos fazem delirar. Aliás, do que fui acusado numa EBD recentemente. Embora o aluno fosse apenas um homem amargurado e cheio de rancor e malícia e que não usou estas palavras. E eu apenas dizia que a expressão “pagar o preço” é inapropriada, pois o único que podemos almejar é a identificação no sofrimento com o Senhor, nada mais. O que passar disso, digo, é legalismo, petulância, ignorância e religião sem a Graça.
De todo modo, penso que como aquele homem que lustra cristos pregados em suas cruzes, preciso lustrar minha fé, retirar as manchas de tintas dos respingos de reformas feitas por um eu desastrado e inábil. Quem sabe, dizer simples e sinceramente, como um Michelangelo ao seu Moisés: Fala! E acrescentaria: Que teu seguidor precisa ouvir.
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