terça-feira, 7 de setembro de 2010

Existência e posse


Com os hebreus, na travessia do deserto, acontece um fato interessante. O maná caía do céu toda manhã cedinho. A descrição sugere como que a cristalização desta substância sobre o chão, como uma geada. Colhido e amassado, era assemelhado à farinha de trigo, era doce e se podia fazer bolos com ele. Havia uma ordem. Cada família colheria a porção necessária para o dia, para quantos fossem em cada clã. A medida exata para saciar a fome. Nada de sobras.
Também não se podia guardar maná para o dia seguinte. Algumas pessoas, preocupadas, não ouviram ou fingiram não ouvir. Estavam aflitas com as condições de sua sobrevivência. O aflito não confia, nem crê. Juntaram a quantidade suficiente e mais um pouco. No dia seguinte, haviam nascido tapurus, fedia, estava podre.
A fome os motivou a quebrar a regra. Há muitos tipos de fome, cada qual fruto de um desejo, e mesmo quando se come não se sacia. Não até que o que deseja deseje outra coisa ou perceba que a tal fome não é de necessidade, mas de uma falta sem nome. É um círculo sem fim. Em A Divina Comédia, Dante descreve os avarentos no quarto círculo infernal. Ali eles estão condenados a rolarem enormes pedras e a se injuriarem mutuamente.
É curioso o hábito de colecionar coisas. O capitalismo sabe disso e se aproveita deste traço tão humanamente idiossincrático. Que motivações nos fazem acumular? Haveria aí um traço de uma necessidade infantil que Winnicot identificou como objeto transicional? Ou é porque somos seres estéticos e colecionar seria apenas reter formas diferentes da mesma coisa que, de algum  modo, preencheria a visão ideal desta coisa que nunca pode ser alcançada?
Talvez, penso, as duas razões expliquem, em parte, nossa característica para guardar. Fatores sociais, ambientais e culturais também explicam. Uma razão, porém, tem um peso especial: a necessidade de controle. A ela servem todas as demais, sejam psicológicas – aqui entendido no plano da relação do indivíduo consigo mesmo – ou comunitárias.
Possuir, como se sabe, nem sempre tem função prática, é mais uma mensagem para si e para o outro. É uma forma de expressão e de relação, daí a ideia winnicotiana de objeto transicional. Aquilo que me permite estabelecer uma relação com o exterior. O exercício da construção de si que nunca acaba. Sina de ser um sujeito permanentemente mediado pela coisa. A avareza seria o estado da arte desta incompletude.
        O povo hebreu – aquele que não era povo ainda, pois hebreu é apenas um designação genérica de pessoas sem definição cultural específica – é uma metáfora desta transição entre ser um indivíduo e aquilo em que um se torna em sua identidade mais íntima.
O sem identidade tenta conservar apenas a vida biológica, não tem vínculo, não carrega nada, não lega. Faz-se a partir de retalhos. Sua segurança é o que possui e ao mesmo tempo é uma mensagem de quem é. Sua relação com o tempo é indicadora de sua não identidade. O passado é algo amorfo, o futuro é um deus-dará. Para ele só existe o presente medido pela posse.
No dia seguinte à gana, o maná havia caído de novo, mas as pessoas foram primeiro aos potes-tesouros. Desconfiavam que o bem não se repete, o cuidado não virá para alguém que não se pensa com valor. Abriram a tampa, contorceram os narizes, era o fedor da ganância, do desamor, do desrespeito àquilo que não fosse o bem preso na mão, seguro, mesmo podre.
Ainda guardamos, acumulamos, é nosso recado de que somos feitos de restos daquilo que preservamos, a vida protegida à custa do medo. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la.

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