Explorei
recônditos da memória, mas não lembro como conheci o Rubem Alves. Seu nome vem
de longe em minha mente. De quando ainda escrevia teologia – digo no sentido
formal, de quem explora o texto bíblico com as ferramentas exegéticas e hermenêuticas
– e desandava a pensar livre a ponto de dar fundamentos para uma teologia nova
que se conheceu depois como “teologia da libertação”.
Por esta razão,
eu o olhava desconfiado. Dessacralizar o sagrado e sincretizar o Evangelho e
ressignificá-lo com as ferramentas marxistas para construir uma nova sociedade,
como se isso fosse possível, ignorando o homem e sua disfunção ontogênica para
o mal, para a desigualdade, foi uma espécie de viagem lisérgica que acabou pela
simples dêbacle dos falsos paraísos comunistas. Mas Rubem não ficou nisso,
ainda bem. Homem de alma sensível, se voltou para outros caminhos. A educação,
a filosofia, a poesia, a psicanálise, a espiritualidade, de onde extraía a
transcendência – não mais da Bíblia que citava de quando em vez. Menos em “Creio
na ressurreição do corpo” –, mas dos Ipês amarelos que tanto amava e outras
flores.
Foi pastor de
almas de forma institucional. Nessa condição, sofreu a violência do exílio. Ele
e tantos outros nas fileiras protestantes. Delatados por irmãos de fé. História
ainda sepultada pelo silêncio. Ainda não se contou o que aconteceu atrás das
cortinas daquela igreja protestante em pleno período de chumbo. Não era a
Igreja Confessante de um Dietrich Bonhoeffer, mas era uma igreja em que havia
uma minoria pensante, desafiada a entender a sua realidade e denunciar suas
contramãos, não essa massa amorfa, carnavalesca, celebrada e pasteurizada que,
a despeito de seu enorme número, pouco impacta a sociedade para além de seus
cacoetes verbais-religiosos.
Acho que Rubem
continuou pastor. Certamente sem igreja, mas com muitas ovelhas. Seu culto e
evangelho estavam traduzidos na profusão de livros que escreveu. A poesia-prosa
de milhares de pequenas histórias que começavam, tantas vezes despretensiosa,
como a espreitar o leitor e então, envolvente como uma bruma de uma manhã fria,
transportava o enlevado aluno para outras plagas do sonho, da verdade, da
alegria, das pequenas descobertas como diz Adélia Prado – por quem Rubem tinha
admiração confessa –, ela que anda com Deus de forma esconsa: “O filete de
capim está nascendo debaixo da pedra. Vai dar, na estação, sua flor dura e
cinzenta, sem ninguém saber.”
Li Rubem
muitas vezes. Numas me irritava com ele, mas era só porque ele ia para lugares
onde eu não queria ou não podia ir. Porque me dava cisma de coisas que eu
discordava como se fosse meu inimigo mortal. Noutras leituras, era como se sentássemos
juntos à mesa para a ceia. Havia um feliz conGRAÇAmento. Um artigo seu, a
propósito daquele episódio dantesco nas cidades de Teresópolis e Petrópolis, há
alguns anos, ele me tirou do sério. Eu, petulante, escrevi artigo e postei no
fórum virtual da Ultimato. Logo apareceu um seu defensor irado. Parecia que
Rubem era seu Senhor e Deus, incapaz de cometer asneira. Travamos um duelo de
palavras. Ele agressivo, me chamando para a briga. Eu, a princípio, evitando o
combate até quase mandá-lo para cucuia. Duvido que o Rubem o aceitasse como
adorador.
Eu gostava de
todas as versões do Rubem escritor. Às vezes me pegava ecoando seu estilo. Era
só ler um livro seu. Ficava contaminado de Rubem. Escrevia parecido porque achava
bonito aquela conversinha pequena, que ia crescendo, crescendo, até ser um
jatobá frondoso. Acho que ele gostaria dessa comparação.
Então um vento
ruim veio de esguelha e com ele uma notícia. Rubem havia sido internado. Era
pouca informação. Não dava para maldar a morte. Sábado (19/07), no final da
manhã, soube que ele havia partido. Fiquei com saudade. Acalentava um plano
secreto de um dia vê-lo em pessoa. Não deu. Desconheço sua ideia sobre o encontro
definitivo com o Altíssimo. Sua carta testamento, em que falava de sua morte,
ele deixa uma frase enigmática, aberta a muitas interpretações. Mas se ele,
como disse Paulo, acabou a carreira e em algum lugar guardou a fé, secretamente
esperava a verdadeira vida, o encontro final com seu Criador. O que o mesmo
Paulo descreve como o caminha para além da visão turva do espelho, o agora
conheço em parte, mas depois conhecerei plenamente, assim como também sou
plenamente conhecido. Se assim for, espero vê-lo e aí conversaremos sobre
muitas coisas. Nada que cada qual não saiba, lá nada haverá encoberto, será
apenas a alegria do encontro.
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