segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Sorria



Bright-sided: How the relentless promotion of positive thinking has undermined America. Em tradução livre, algo como: O lado ruim das coisas: como a promoção incansável do pensamento positivo prejudicou a América da jornalista Barbara Ehrenreich (ed. Record) é uma análise implacável do pensamento positivo. O título é pretensioso, particularmente quando pretende explicar algo tão complexo em apenas 235 páginas e citações basicamente de jornais e revistas e visitas in loco a igrejas e universidades feitas pela jornalista na fase de reunião de dados para o livro.
Nos EUA, a obra foi publicada logo após a explosão da bolha imobiliária, 2009, o que sugere algum oportunismo da autora, considerando que o mundo inteiro já sofria com o desastre dos títulos podres que alimentavam a ciranda financeira americana um ano antes. Não tira o mérito da autora, pois, aparentemente, já havia escrito artigos anteriores questionando algumas das manifestações mais evidentes desta visão. Em particular, criticando a psicologia positiva que, no período anterior, foi catapultada à abordagem queridinha de muitas universidades americanas entre outras mundo afora. Barbara Ehrenreich dedica um capítulo inteiro para cutucar os “buracos” da teoria de Martin Seligman e outros, incluindo a descrição de parte de uma entrevista que realizou com o próprio.
No Brasil, a obra ganhou o título comercial de “Sorria: como a promoção incansável do pensamento positivo enfraqueceu a América”. O Sorria está na capa com letras garrafais e foi assim que chamou minha atenção, por ironia, despejado na sessão de auto-ajuda.
A autora inicia falando de sua própria experiência com um câncer de mama e as diversas ações não médicas de apoio aos pacientes e de como isso a fez entrar em contato como a filosofia positiva. Destaca o quase ridículo de algumas posturas que colocam a paciente na incrível situação de, pela visão positiva, força do pensamento, visualização, etc, etc fazer sucumbir a doença. Questiona a culpa que isso pode produzir caso não consiga. Ela mesma se diz alvo de críticas quando questionou esta postura num site especializado. Não ser positivo nestas questões e noutras, significa, não que a pessoa seja realista, mas simplesmente uma ave de mau agouro. Se fosse na igreja, seria falta de fé.
O fenômeno, segundo Ehreinreich, explica claramente a onda da teologia da prosperidade e as festejadas e bafejadas megaigrejas de pastores como Rick Warren e assemelhados que, no Brasil, vendem horrores e fazem a cabeça de muita gente. Mas suas baterias se voltam em especial a um tal Joel Osteen que lidera uma igreja em Houston, Texas,  com 16 mil lugares. Vende livros como água e está riquíssimo, embora seu público seja de pessoas de classe média e baixa, as principais vítimas da crise americana. Barbara questiona não só a lógica dos livros de Osteen, mas a própria indigência de suas ideias e a forma de apresentá-las.
Ainda no campo religioso, faz duras críticas ao mundo calvinista e à filosofia de vida que produziu. Aqui se sente o azedo de seu ateísmo. Precisa aprender com seu colega de descrença, o filósofo suiço Alain de Bolton. O Calvinismo foi trazido pelos imigrantes originais e forjou a sociedade americana. A visão da salvação calvinista é predestinista, mas, para o fiel, como saber se é predestinado ao céu?, argumenta a autora. A regra seria abster-se de toda e qualquer coisa que lhe desviasse do santo caminho (os prazeres de qualquer espécie) e se ocupasse com coisas produtivas. Além disso, dever-se-ia fazer exames regulares de consciência em busca de qualquer pecado que poderia lhe retirar o paraíso. Barbara afirma que a contradição desta lógica se deu no final do século XIX com a Consciência Cristã de Mary Baker Eddy, entre outros.
No século XX, destaca particularmente o pastor Norman Vicent Peale, autor do clássico “O poder do pensamento positivo”, publicado em 1952 e até hoje no catálogo de vendas. Peale é o papa do pensamento positivo e se autodenominava doutor em terapia espiritual. É a inspiração de todos os pastores positivos e teólogos da prosperidade.
A visão positiva, segundo registra Ehreinreich, invadiu o mundo corporativo, a ponto de pessoas serem demitidas apenas porque ousavam ver que o rei estava nu. Esta exuberância alimentou ganhos financeiros cada vez maiores e levou a classe trabalhadora a endividamentos impagáveis e à dêbacle econômica que se seguiu com milhões de postos de trabalho perdidos e empobrecimento. Tudo porque o mantra dito e redito por todos, das igrejas aos CEOS das maiores empresas, do governo ao pequeno comerciante, era que tudo daria certo, era só acreditar. Eis uma fé profana. Claro que isso cheira a irracionalidade, mas ninguém queria ser o primeiro a dizer que o barco estava afundando e que o edifício de cartas não se sustentaria. Houve raras exceções.
Ehrenreich não faz concessões à visão positiva. No campo clínico, talvez porque sofreu com a doença e o constrangimento de ter que pensar positivamente, Barbara não pesquisou que a postura correta da psicologia é a de acolhimento seja o que for que este paciente manifeste. Ajudá-lo a elaborar sua perda (luto), fortalecer sua autoestima, não a troco de palavras de efeito, mas no suporte ao seu momento de dor. O psicólogo anda com, não é um tambor marcador de tempo de remadas das Galés. A psicologia pode ser imensamente útil na compreensão do momento de vida pela qual o paciente passa e, com isso, contribuir para sua qualidade de vida. Não vende ilusões. Trabalha com a verdade do fato, do paciente e de sua formação.
Além dos pastores positivos e seus livrinhos água-com-açúcar, que não falam mais em pecado ou condenação eterna, Barbara critica duramente aos coaches vendedores de sonhos esmolambados que subiram às alturas no circuito empresarial americano, seja enganando os funcionários ou aos próprios diretores e CEOS que preferiam ouvir que o pensamento sozinho pode mudar qualquer situação, a estudar os relatórios e números que diziam que seu comportamento subvertia os princípios econômicos básicos. Um de seus alvos principais é a australiana Rhonda Byrne, autora do ridículo “O segredo” onde defende a “lei da atração” e que a enriqueceu estratosfericamente.
Apesar de tudo que aconteceu, o pensamento positivo irresponsável não dá sinais de fim. Ele, como um camaleão, simplesmente muda e ajusta suas explicações. A psicologia positiva, depois de subir aos céus, está em crise mortal pela simples falta de suporte científico. Segundo conta, Seligman mudou o discurso – a ver se renegará seus escritos – e parece ter se voltado para um caminho que não fica claro se de tentativa de salvação da psicologia positiva ou de mudança de seu paradigma, donde não seria mais psicologia positiva. Os coaches ainda ganham dinheiro com seus encantamentos, sempre há otários e símplices dispostos a ouvi-los e pagar por sua baboseira. Os pastores, estes parecem continuar imunes ao fracasso de suas ideias heréticas. As prateleiras andam cheias de seus livros e as igrejas, quais sanfonas, incham e esvaziam ao sabor de mais uma patacoada da moda. Até quando? 
Por isso tudo, vale a leitura. Concordando ou discordando com Ehrenreich ao final você, que estava em dúvida, ficará um pouco mais esperto. Quanto ao tolo, este não tem salvação.

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