terça-feira, 25 de março de 2014

12 anos de escravidão

O filme 12 anos de escravidão recebeu 9 indicações e agora, todo mundo sabe, arrebatou o Oscar de melhor filme de 2013, além de Lupita Nyong'o (Patsey) que levou o Oscar de melhor atriz coadjuvante. Depois de ver o filme, você saberá por que Julia Roberts (Álbum de Família), Jennifer Lawrence (Trapaça) – ganhou o Globo de Ouro na mesma categoria –, June Squibb (Alabama) – não muito conhecida do público –, Sally Hawkins (Blue Jasmine – deu o Oscar de melhor atriz para Cate Blanchet) não eram páreo nessa disputa.
Os méritos artísticos do filme já foram sobejamente comentados e são todos justos. A história foi magistralmente bem contada. Os atores e atrizes fizeram atuações soberbas que resultou em total veracidade da trama. Destacarei outras coisas.
Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor) é um negro liberto que vive com sua família numa boa casa com esposa e dois filhos. É violinista. Em certo momento, é raptado por traficantes de escravos e enviado para o Sul escravagista. Forja-se um novo nome – Platt - para legalizar a situação. Então, começa seu calvário. A transformação de um homem livre e cônscio disso, orgulhoso de seu talento, feliz com sua família, num arremedo de gente é, possivelmente, uma das coisas mais incríveis do filme.
Transformação tal não se consegue apenas por vestir trapos, despentear o cabelo. Requer um investimento emocional profundo capaz de mudar o andar altivo de outrora em passos caquéticos e indecisos, ombros arqueados, cabeça sempre baixa e olhar baço. Um ser subjugado. Um homem que, antes, tinha orgulho de sua arte e capacidade, deverá aprender a duríssimas penas a calar, esconder-se, apequenar-se, passar, como sugere outro escravo, despercebido, tornar-se um fantasma.
Aos poucos, Salomon desaparece. O símbolo máximo deste apagamento dá-se quando Platt destrói o violino. Uma espécie de punição por ter usado as mãos que o tocavam para chicotear, embora obrigado, sua amiga Patsey. Em vários momentos, o homem livre que pulsa debilmente busca saídas. A tentação de fugir lhe assalta. Mas está só. Não pode confiar em ninguém. O medo e a desesperada postura de autopreservação são as únicas coisas vivas nele. Enfim, a história, apesar de real, tem um final feliz com sabor amargo.
Há outra coisa marcante: a religião. O protestantismo como expressão de fé, a centralidade da Bíblia como regra prática da vida, embora com interpretações particularíssimas, servem como pano de fundo e estão presentes nos dois lados: justifica a escravidão para os brancos, alivia o suplício e supre de esperança – além de dar um sentido para a existência – para os escravos. Os negros adotam o Deus dos brancos opressores e O interpretam de maneira totalmente diferente. Descobrem o Deus de justiça, misericórdia e amor que se volta contra os brancos cegos, hipócritas, verdadeiros demônios crentes, seja pela acusação verbal direta, seja pelo clamor mudo por justiça e a expectativa de que eles prestarão contas a Deus um dia.
Eis um fenômeno curioso. Os negros, em sua maioria, analfabetos, ouvem as pregações de seus algozes e lhes dão outro sentido. O primeiro senhor de Salomon, Ford (Benedict Cumberbatch), tenta apaziguar sua consciência reunindo seus escravos aos domingos para fazer leitura da Bíblia. Seus escravos não são maltratados, mas são escravos. Deus é uma desculpa. Ele é um covarde que tenta sobreviver no sistema pelo qual, consola-se, não tem culpa.
A religião será, para os negros, um refúgio. A escravidão, sua peregrinação pelo deserto. A música emerge neste quadro de dor como o grito da alma, uma catarse coletiva quando cantam. Uma cena resume magistralmente esta situação. À beira do túmulo de um negro que morrera de exaustão no campo de algodão, uma mulher inicia um canto que fala da travessia do Jordão para a terra prometida. Platt, músico, está mudo de dor e ódio. Aos poucos seus lábios murmuram. Uma, duas, palavras. Cabeça baixa, olhos lacrimejantes. Logo, permite-se que a música faça seu trabalho de, mesmo por um momento, produzir libertação. Então ele abre a boca, solta os pulmões represados, olha para o céu e solta a voz. Por breve instante eles são um, eles transcendem o mal.

O filme já é um clássico.  

Nenhum comentário: