Em Brasília, o feirante tinha o
rosto crispado de uma dor intraduzível nas palavras que saíam de sua boca em
sibilos e entrecortadas. Uma das mãos, levada ao rosto, tentava esconder o
sofrimento e choro contido enquanto tremia levemente. Não ousava levantar os
olhos, enquanto a repórter o enchia de perguntas. “Era a chance de ficar rico”,
disse, finalizando a fala.
Simultaneamente, a mil
quilômetros de distância, em São Paulo, um taxista reproduzia exatamente a mesma
cena diante da câmera. Como um tique nervoso, mexia nas folhas de apostas como
se fosse um jogo de baralho, tentando desesperadamente entender sua desdita.
Os dois casos reproduzem a mesma
perda. Ambos acertaram as seis dezenas da mega sena da virada que pagou mais de
240 milhões. Contudo, por razões também muito parecidas, eles não registraram
os jogos. Restava lamentar-se. O primeiro, quedou-se inconsolável. O segundo,
alegou vagamente à vontade de Deus, enquanto dizia que a quantia perdida
resolveria sua vida.
O sofrimento da perda é algo da
condição humana tão inevitável quanto a morte, certamente sua mais pungente
tradução. Um dia, cada um de nós a enfrentará. Aos sintomas visíveis e
invisíveis deste processo, chama-se luto. No caso do feirante, houve um quadro
sindrômico que culminou com um desmaio, fato que o levou ao hospital.
Um dos efeitos terríveis da perda
é a culpa. No processo de tentar entender, o sujeito especula mil formas que
ora o joga para o futuro – tateando as consequências se tal coisa não tivesse
acontecido –, ora está preso ao passado – mais este – indagando possibilidades
de “se” tivesse feito tal coisa, “se” fulano não tivesse aparecido e outros
milhões de “ses”, perdido que está num círculo vicioso consumidor. O peso da
culpa pede um bode expiatório, posto que difícil entrar em contato com tal
sentimento sozinho. Em grande parte das vezes, nenhum deles é suficientemente
bom para expiar a angústia opressora.
Angústia é um dos principais
componentes da perda/culpa. É fruto da irremediável impotência ante um momento
que passou e ao qual é impossível retornar e fazer diferente. Abre um abismo
entre o fato presente, consumado, e as suas possibilidades irreconciliáveis que
agora existem apenas no mundo mental daquele que sofre. A palavra, em sua
origem latina, significa estreitamento, apertamento que é a sensação que se
sente no peito. Produz ansiedade, tristeza profunda, amplia a consciência da
perda com a consequente sensação de incapacidade e percepção de desvalor.
Produz também paratimia, que é a manifestação de emoções desencontradas com a
realidade.
A perda e suas manifestações,
contudo, tendem a passar, por mais que o tempo psicológico, nestas situações,
deem a percepção de eternidade. Pode ser um processo longo ou não. A elaboração
de toda esta energia psíquica, manifesta também em várias reações corporais,
precisa encontrar um veio de significação. É uma experiência limite que deixará
lições, cicatrizes. Superá-la é percebê-la sem os mesmos movimentos emocionais
sentidos no momento do ocorrido. Ou senti-los muito atenuados, sem angústia.
Em se tratando de dinâmica
psicoemocional, existem princípios de enfrentamento, não fórmulas iguais para
todos. É certo, sem dúvida, que a cura pede a visita ao fenômeno tal qual ele
ocorreu, muitas vezes se necessário, até que os sentidos sejam construídos, a
aceitação do que não pode ser mudado se instale.
Ao feirante e ao taxista cabe
agora um processo de superação desta infeliz experiência. O gosto amargo
permanecerá por longo tempo, mas passará. A vida aos poucos voltará ao seu
eixo, ainda que numa forma que eles não sonharam para si.
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