quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Deus da Carnificina


Um grupo de crianças brinca num parque. A cena, propositadamente, é distante, como se olhássemos de um segundo andar de um prédio próximo. De repente, dois dos garotos começam a se empurrar e um deles, que aparentemente segura um galho, agride o outro no rosto. Corta.
A cena seguinte, em primeiro plano, um computador e vozes que se alternam decidindo qual melhor palavra se adequa para compor o que parece ser um termo de acordo. À medida que a câmera abre o plano, surgem dois casais. Logo se percebe que são os pais dos garotos brigões. Um casal aparenta melhor condição financeira e o que recebe em sua casa tem uma vida mais modesta.
Terminado o texto do acordo, os pais do garoto agressor se preparam para sair. O outro casal os seguem até à porta. A conversa gira em torno da agressão, naturalmente. O clima é de cordialidade desconfortável, mas dentro dos padrões de respeito e educação. Os pais do agressor concordam que o filho passou dos limites e a mãe do agredido, o tempo inteiro, faz questão de reforçar os dois dentes molares perdidos, o nariz quebrado do filho. O pai minimiza. A tensão é grande, mas toda entremeada por sorrisos. Além de tentarem selar a paz, planejam que os dois garotos se encontrem para os pedidos de desculpa protocolares.
A certa altura, percebendo que a conversa pede um pouco mais de tempo, o pai anfitrião sugere que o outro casal entre novamente para um café. Com a esposa, na cozinha, comenta que o casal do garoto agressor é simpático. Na sala, o casal convidado repete o mesmo comentário.
Nancy e Alan (Kate Winslet e Chistoph Waltz, ambos condecorados com um Oscar) fazem os pais do garoto agressor. Penelope e Michael (Jodie Foster – também já recebeu um Oscar – e Jonh Reilly) fazem os pais do agredido.
Nancy é rica, educada e bem vestida. Alan é advogado de uma multinacional de medicamentos. Penelope é escritora e trabalha com arte. Michael é vendedor de utilidades para casa. Entre xícaras de café e pedaços de torta, os diálogos vão se desenvolvendo e todo o verniz de civilidade, educação e bons modos vão se deteriorando. Piora tudo quando Michael, homem que tenta o tempo inteiro compor um tipo mais polido e agradar à esposa, decide ser ele mesmo e expor seu desconforto. Ele é rude, desinteressado e distante.
Todo o tempo, pelo celular, Alan orienta pessoas da farmacêutica a respeito de um remédio que tem causado efeitos colaterais muito mais severos, mas faturaram milhões de dólares mesmo sabendo disso. Alan é um cínico profissional por trás do homem ocupado e profissional bem sucedido. Sua esposa é superficial e cega aos maus feitos do filho, a quem o pai chama de marginal. Passa mais tempo tentando controlar o marido e suas atitudes desrespeitosas e arrogantes que ele nunca disfarça. É de uma fala sua que se houve o título do filme. Ênio vem a ser da deusa da carnificina. Segue Ares, deus da guerra, ao lado de outros deuses igualmente aterradores: Éris, deusa da discórdia; Deimos, deus do pânico e Fobos, deus do medo.
Penélope é uma mulher rígida, afeita a valores e normas os quais devem ser seguidos à risca sem qualquer concessão. Adepta do politicamente correto, escorrega em sua própria intransigência. A situação degringola de vez quando Michael resolve beber, no que é seguido por Alan e depois pelas mulheres, que cobram seu direito nisso também. A bebida desinibe e despe os últimos vestígios de controle e os personagens dão vazão às suas verdadeiras opiniões uns sobre os outros e sobre o episódio.
Vômitos, gritos histéricos, palavrões e deboche tomam lugar das palavras bem postas e rapapés da educação burguesa. Os casais alternam acusações entre si no que desmontam as aparências de cada qual, expondo suas contradições. Ao mesmo tempo se voltam uns contra os outros revelando as fissuras de cada relação. Algumas vezes as mulheres farão uma aliança contra os homens e vice versa.
Os quatro atores estão soberbos e na medida certa de cada personagem. Desconto para Jodie Foster que, quando representa a sua personagem quase bêbada, parece exagerada e uma representação forçada.  
Levantado o véu e mostrada a crua hipocrisia que se carrega não como fardo, mas como disfarce, instrumento de relações, ninguém é normal  visto de perto. Nós todos, para aguentar até aqueles que dizemos amar, temos que fazer de conta, não poucas vezes, que eles são aquele modelo que só existe em nossa fantasia. O amor, talvez, faça com que nosso olhar seja compreensivo e tolerante e o desamor é quando olhamos o outro sem qualquer filtro. Ele/ela é aquela coisa asquerosa e vil que detestamos sem qualquer vestígio de empatia. Nisto estamos empatados com todos, exceto quando encontramos aquele/aquela que, por alguma forma de coincidência, aceita nossos defeitos. Ou porque os tem em igual intensidade e forma ou porque, sei lá, foi tocado por uma de nossas parcas virtudes.
A cena final com os casais termina de forma abrupta e, como no início, corta para o parque. Lá os garotos, provavelmente alheios aos pais e seus valores, cobranças e necessidade de justiça, estão conversando amigavelmente e novamente reunidos aos amigos.

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