Entre tantos aforismos que
preenchem o livro bíblico de Provérbios (15.13), deparamo-nos com um que diz
assim: “O coração alegre
aformoseia o rosto, mas com a tristeza do coração o espírito se abate.” Esta é a versão Almeida Revista e Atualizada. Outras
versões enriquecem o texto como se fossem outros ângulos de uma mesma pedra
preciosa. A Edição Pastoral, da Editora Paulus, diz ligeiramente diferente: “Coração contente alegra o rosto, mas coração aflito deprime o
espírito.” A Nova Tradução na Linguagem de Hoje não usa a palavra coração,
é mais direta e simples: “A alegria embeleza o rosto, mas a tristeza deixa a pessoa
abatida.”
Por fim, a Nova Versão Internacional colore a mensagem com esta forma: “A alegria
do coração transparece no rosto, mas o coração angustiado oprime o espírito.”
Que coração é este de que fala o
escritor? A versão Hebraica da Bíblia abarca vários sentidos e é muito mais
direta quando trata do tema, pois o que para nós é metáfora, isto é, coração
igual a mente, sentimentos, para eles pode ser homem interior, mente, consciência,
vontade, sede moral, dos apetites, das emoções e paixões. Resumamos: para este
momento, todos estes significados como o conjunto do que compõe o que chamamos
de homem interior. É o mesmo sentido em que Paulo usa esta expressão em Romanos
(7.22), 2 Co (4.16) e Ef (3.16). A leitura dos três textos nos faz perceber que
aí reside o verdadeiro eu de cada um de nós.
Mas onde está este eu? Carl Rogers,
psicólogo humanista, argumenta que uma das nossas fontes de desencontro interno
é viver em luta entre um eu ideal – existente na mente, projetado como um
sonho, aquilo que eu gostaria de ser – e o eu real – apequenado, disforme,
desencaixado, habitante do cotidiano duro e seco. Romanos 7, Paulo encontra-se
numa luta interna entre estes dois eus. Diz ele: “Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero, isso não faço, mas o
que aborreço isso faço.”
(7:15) Um eu alegra-se na “lei de Deus”; o outro, nos prazeres da carne. É um mesmo homem. Ambivalente. Incontrolável. Sem saída, apela como que a esmo para quem pode livrá-lo desta morte em vida: “Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?” (7:24).
(7:15) Um eu alegra-se na “lei de Deus”; o outro, nos prazeres da carne. É um mesmo homem. Ambivalente. Incontrolável. Sem saída, apela como que a esmo para quem pode livrá-lo desta morte em vida: “Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?” (7:24).
Rogers chama esta situação terrível de
incongruência. Traduzindo: a incongruência é o processo em que o autoconceito não corresponde às
experiências reais. Penso de mim isto e aquilo, mas vejo outro de mim agindo e
existindo, distante do que penso ser.
Mas voltemos ao
escritor proverbiano. O homem interior que assumiu o desafio de ser íntegro,
coerente, funcionará de forma organizada. A experiência de vida corresponde ao
que é internamente. Neste aspecto, a descoberta de Paulo pode nos ajudar. No
versículo 25 ele descobre – pela graça de Deus e por Jesus Cristo – que este
homem interior – com seu entendimento – serve à “lei de Deus” e o homem
exterior – carnal – serve à lei do pecado. Curioso, não? O que Paulo argumenta
em dois terços do livro é que agora, ele e os que creem, estão mortos para a
lei do pecado, nascidos sob a graça, mediante a fé, são agora de outro reino.
Lei do pecado era a lei que determinava a condição de ser humano caído,
separado de Deus.
Por outro lado, o homem interior
(coração) triste, sofrido, afligido, dorido, destroi o espírito. Sim, espírito
significa o hálito de vida, o sopro da vida. A centelha da existência estará,
literal e irremediavelmente perdida ou sem o alento que anima o corpo. O homem
interior desconjuntado, incoerente produz semblante triste. E não há como ser
diferente. O rosto é o espelho da alma. Dizem que os os olhos o são, mas eles,
certamente, desenham todo o resto.
Uma das coisas que produzem esta
tristeza é viver em conflito sem buscar saída. Ou nem tanto. Alguns estão tão
anestesiados que não sabem quem são. Contentam-se em refletir os outros. Quero
ser aquilo que não sou. Visto-me da melhor forma. Uso palavras e modos que
agradam aos outros. Esforço-me por ser igual aos demais. Sigo a moda. Renato
Russo cantou em “Quase sem Querer” que mentir para si mesmo é sempre a pior
mentira. A música fala de alguém que vive pelo padrão alheio. Quer agradar a
todos e nesse intento infeliz se faz em mil pedaços, desperdiçando muitas boas
chances porque estava ocupado demais tentando provar para todo mundo que não
precisava provar nada para ninguém.
Mário Quintana, poeta gaúcho,
reflete em “O Velho do Espelho”: “Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é
esse /
Que me olha e é tão mais velho do que eu?” Amanhã você se olhará no espelho.
Aquele(a) que você verá, quem é?
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