O papa Bento XVI declarou nesta quarta-feira que o purgatório
não é um lugar do espaço, do universo, "mas um fogo interior, que purifica
a alma do pecado".
O Pontífice fez estas manifestações perante 9 mil pessoas que
assistiram à audiência pública das quartas-feiras, cuja catequese dedicou à
figura de santa Catarina de Gênova (1447-1510), conhecida por sua visão sobre o
purgatório.
Fonte: site Terra (12 de janeiro de 2011)
Ele estava azedo. Quis saber por quê.
Balbuciou algo ininteligível. Se fosse minha avó, diria que ele budejou. Não
está no Aurélio e, suponho, o Houaiss também desconhece esta flexão corruptela
no passado do verbo balbuciar. Ele, explico, é um velho amigo. Não declinarei o
nome, ainda que inventado. Religioso das antigas, daqueles que não come carne
na semana santa e guarda com genuflexão dias santos e festas, com todos os
ritos que conhece. Não consta, para mim, que ele se flagele com um cilício, por
exemplo, mas andou de joelhos algumas escadarias.
Como disse, indaguei o motivo de
tamanha desconsolação. Movimentos lentos, palavras medidas e um ar de velório,
só disse: o purgatório. Mesmo assim, a palavra saiu sumida da boca. O mistério
só aumentou. Pensei no pior. Estaria com os dias contados? Soubera de uma doença
terminal? Minutos depois, ainda como que em transe, acrescentou: o papa. Tentei
juntar o papa e o purgatório, mas por uma dificuldade dedutiva de meu espanto,
preferi esperar. Pensei até em me aconselhar com Dante, sei lá, folhear a
Divina Comédia até encaixar as duas informações, mas seria perda de tempo. Em
toda a trajetória pelos círculos infernais, Dante encontrara desafetos reais
que ali colocara por vingança, dizem, mas absteve-se de colocar qualquer Papa
no lugar.
Longa espera. Ele resolveu falar.
O Papa acabou com o purgatório, você pode imaginar isso? Perguntou e, sem
esperar uma resposta, que eu não tinha, emendou: como é que vai ficar tudo? Se
mexer no purgatório, onde é que fica o céu e o inferno? Sua Santidade afirmou
que o purgatório não é um lugar. Passei a vida sabendo que é um lugar. O
catecismo dizia. Os velhos professores de religião tinham certeza. Um lugar com
endereço fixo. Abrigou milhões por não sei quanto tempo e agora, assim sem mais
nem menos, desapareceu. Onde essa gente foi parar? Despejados como moradores de
rua incômodos. Estou sem chão e agora, sem purgatório.
Quando eu imagino que a gente
quase podia fazer um turismo mental no purgatório, tamanho eram os detalhes que
nos diziam: pracinhas, ruas simpáticas com vendedores de bugigangas chinesas,
lugares legais para comer e conhecer gente. Claro que teria falta d’água,
apagões, malandros, políticos corruptos, poluição, mas nada insuportável. Quer
dizer, antes de estar lá, você como que desenvolvia uma relação afetiva com o
lugar e de repente acabou.
Estou com medo, queixou-se. Agora
é céu de um lado, inferno do outro e no meio o nada. Sem uma estação
intermediária para resolver aquelas pendências que a gente tem, você sabe,
procurou minha solidariedade, talvez, é como um cara ou coroa. Quer dizer, uma
coisinha assim de nada pode me jogar nos quintos, pois a balança vai pesar pra
um dos lados e aí, já era.
O Papa disse que o purgatório é tipo um fogo
purificador dentro de nós. Não sei não, desde que o mundo é mundo purgatório é
um lugar onde as almas semidanadas descontam o excesso de pecado. Precisa mesmo
ser um lugar, para acolher esse monte de gente. Ter instalações adequadas e os
locais com profissionais experientes para fazer a limpeza ou ensinar seja lá o
que se precisa para aliviar o peso. O Papa deve saber o que diz, mas quero ver
como é que a gente transforma um lugar numa abstração.
Tem mais. Este novo purgatório
interior acontece antes ou depois da morte? Não ficou claro. Tem um estágio de
aprendizado de como carregar o purgatório inteiro nas costas? É portátil? Tipo:
cabe num pen drive? Há que pensar também na temperatura deste fogo purificador
interno. Como se sabe, o purgatório antigo era quente, mas suportável, pois
quente mesmo é o inferno. Convenhamos, uma coisa é um fogo fora, você se
afasta, se esconde atrás de algo, coloca os recém chegados na frente. Mas com o
fogo dentro de si fica difícil. Haverá algum tipo de termostato para regular o
calorão? Estou cheio de dúvidas, você me entende? Eu não entendia. Nunca cogitei
o purgatório e nem sabia que havia tantos pormenores envolvidos nesta moradia,
ainda que temporária, segundo disse meu amigo.
De qualquer modo, estava
penalizado pelo desamparo do meu amigo. Pensei em dizer que o Papa falou apenas
figuradamente, que fez um exercício retórico teo-filosófico, mas não
adiantaria. Não estava sendo fácil para ele suportar que aquele lugar
simplesmente tenha desaparecido. Pensei em sugerir que estava ocorrendo um
programa imobiliário celestial e que precisaram do espaço que estava meio
decadente como os centros velhos de uma metrópole, com montes e montes de gente
sem fazer nada, esperando o tempo passar para poder subir de degrau espiritual.
Mas até eu achei a ideia meio maluca.
Meu amigo continuava confuso.
Com esta mudança, disse ele, depois de longo embatucamento, acabo virando
protestante, pois eu lhe pergunto, de que adianta um católico sem purgatório? De
repente, seu rosto se iluminou, quem sabe, já meio arrependido de ser
protestante. E se o santo padre mandasse construir um purgatório novo, num
lugar menos mal afamado? Espaço entre o inferno e o céu não falta.
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