sábado, 31 de dezembro de 2016

Um segundo é tudo que precisamos?

E lá vamos nós outra vez! O ano que se vai deixa um rastro de perplexidade, o que o tornará inesquecível. A lista de eventos é exagerada para um ano só. Tenho a sensação que vivemos vários anos em um. Como se vive um continuum e as demarcações temporais são meras ficções, os desdobramentos que virão em 2017 podem ser ainda mais assustadores. Não agouro. Prefiro manter a porta aberta para o que for.
Outra curiosidade deste ano excepcional. Ele ganhou um segundo a mais. Ajuste de rotina realizado pela instituição Tempo Atômico Internacional. A explicação é que é curiosa. Caso não fosse acrescentado este segundo, estaríamos mais rápidos que a rotação terrestre. É como se você estivesse dentro de veículo e chegasse ao destino antes do próprio que lhe carrega. Uma bizarrice, convenhamos.
Talvez fosse este mesmo o desejo de todos nós. Sair o quanto antes de um ano que nos descabelou de preocupação e sustos. Minha percepção é que a ordem das coisas que estava mais ou menos segura, a duras penas certamente, sofreu severo abalo e ainda ameaça uma desconjuntura no ano que chega, donde me pergunto se a pressa para sair do convulsionado 2016 nos levará a algo melhor, para além de nossos desejos protocolares.
Acho que todos temos este sentimento de um ano que se arrasta e como cada segundo dele nos deu eventos horrendos aos borbotões, como se a cada curva de seu tortuoso caminhar um desastre iminente nos espreitasse. Pergunto-me se lhe dar um segundo a mais não é uma temeridade. Sei das consequências para satélites, posicionamento global do transporte, a economia, enfim. E daí?
Que mais dá tudo isso quando parece que num segundo se repetirão as mortes aos milhares de afogados no Mediterrâneo, nos atentados terroristas cada vez mais brutos e diversificados, nas convulsões políticas – e nós que o digamos –, na ampliação da tentacular Lava Jato com suas centenas de delações premiadas que de tanta corrupção começa a se tornar banal, nas quedas de aviões por ganância ou falta de manutenção, nos fenômenos climáticos cada vez mais perturbadores.
Um segundo a mais e países inteiros se desfarão como vimos acontecer, exceção para a Venezuela que insanos e marginais estão destruindo devagarzinho, um segundo após o outro, com método, loucura e insensibilidade. Um segundo é tudo que se precisa para uma escolha desastrada... ou não. É de se perguntar por que a terra atrasou ou nós nos adiantamos. Como conseguimos este feito? Ocorre-me uma explicação mais simplória: nossos relógios enlouqueceram. Contaram tempo a mais e deixaram a terra para trás. Então nos demos conta que durante um ano inteiro apressamos acontecimentos, precipitamo-nos adiante no futuro sem estarmos preparados ou resolvidos no básico.
Entre nós e a terra ficou um espaço vazio que precisamos encher com um segundo, nos tornar mais pesados nessa carreira desabalada para um sem rumo que é como as coisas parecem estar. O atraso, quem sabe, nos poupe de outros desastres, pois na hora exata de seu acontecer ainda não teremos chegado ao local e momentos fatídicos.  O segundo a mais talvez nos faça refletir sobre nossa brutalidade, alheiamento, desumanização.
Em um segundo, a terra caminha ao redor de si 465 m, parece pouco, mas é a essa distância que estaremos do ano próximo quando a hora da mudança chegar. Caminharemos todo um segundo como quem atravessa uma fronteira em terra de ninguém. Voltaremos a caminhar como bípedes, um metro por segundo, um passo de cada vez. Talvez nos demos as mãos. Talvez olhemos para o outro que está ao lado. Quem sabe percebamos o caminho e a paisagem e, na contemplação, descubramos nossa verdadeira dimensão: grãos de pó com síndrome de onipotência carregados de hubris.

PS. Obrigado pela companhia. Desejo a todos um novo ano em que aprendamos a ser melhores. Isso nunca vem sem dor, sem luta, sem esforço. Que Deus tenha misericórdia de nós.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Não sou má pessoa

“Estou arrependido. Também não sou uma má pessoa. E o senhor [Ruas] que estava lá trabalhando também não era, era um cidadão de bem”, disse a jornalistas.

O incrível nessa frase é o aparente constrangimento que ela revela. Seu autor parece preocupado com sua imagem ante um ato errado que cometera. A opinião dos outros, de algum modo, ganhou um peso e importância que ele se vê premido a dizer que, a despeito de seu erro, não é alguém ruim. É como se, repentinamente, ele tivesse entrado em contato com uma versão de si mesmo que é horrenda e estranha a ele mesmo.
Espantado com o que se depara, se vale de uma maquiagem verbal. Ele fala de forma maquinal como se estivesse ausente e repetisse aquilo porque se lhe perguntam. Ele tem consciência do que fez, mas só ali preso, no mostruário dos olhares incriminadores, mirado por câmeras e microfones, se tornou real e aterrador como se o demônio tivesse saído da caixa e agora mostrasse toda sua feiúra.
Ele justifica o morto. Ensaia a defesa de sua honra e inocência. De alguma forma isso ameniza seu crime bestial. Algo nele se irmana com o assassinado. Ele ensaia uma igualdade que os coloca a ambos como homens de bem, o que só torna sua declaração ainda mais chocante e espantosa. Parte dele agride, outra parte morre. É essa parte morta que pede clemência. Que tenta minimizar. Que se desorienta por não saber juntar os dois lados.
Seu olhar perdido procura um ponto de apoio, mas vagueia para lá e para cá nas dezenas de rostos que vão de curiosos a hostis, de sádicos a ameaçadores. A realidade cruel se infiltra agora em toda sua dureza na alma atormentada do assassino. É um bicho enjaulado. Seu cérebro pensa mil formas de escapar, mas é inútil. Dizer que não é má pessoa é uma louca defesa. Não faz qualquer sentido, mas nem precisa. No momento é tudo que tem, embora a verdade fria e afiada como uma katana lhe deixe nu ante a multidão.
É impressionante que ele se preocupe como sua boa fama, a reputação que, sendo miserável e banal, nunca valeu grande coisa. Cada qual carrega uma autoimagem de si e tendemos a ser autoindulgentes com ela. No fim é tudo que se tem e é também um ponto de partida de nós que caminha em direção ao outro ou se manifesta em meio à massa de gente. Esta aparência interna diz quem se é, diferente do outro, reconhecível por algum valor, por roto que seja.
A autoimagem, por disforme que seja, explica uma unidade, mesmo remendada com fita adesiva vagabunda que, não conseguindo prender suficientemente as partes que bambeiam, ameaça romper-se ao mero esforço e abrir a rotura. Muita gente se arrasta por aí mal ajambrada, sabe-se quase nada, percebe-se menos ainda. É o que é num amontoado de instintos, cada um gritando por satisfação. Precisam acontecer hecatombes, um armagedom particular para despertar.
Pessoas assim vivem a mínimos de distância de desastres. Alguém indicou que o assassino descobrira uma traição da mulher naquele dia fatídico, daí a explosão de monstro captada na câmera da estação do metrô. Disse que não justifica a carnificina de um só, o vendedor.  Pelo jeito, queria achar uma explicação para a selvageria, posto que não se encaixa em nenhum parâmetro de normalidade.  Assim, o assassino parece mais humano. Pode-se concluir que qualquer um faria igual. As bestas-feras em nós, no entanto, são alimentadas do nada, do vazio de bem, da falta de coisas elevadas. Elas se reduzem à carne e seu frêmito. Daí porque suas reações tem a assinatura da insanidade.
Recuso a mínima insinuação de que qualquer um poderia realizar a barbárie como se fosse algo que nos escapole sem controle. Bastaria alguém acender o estopim. Esconder os assassinos na pobreza ou miséria é outra saída infeliz. Também pobre, de onde o vendedor tiraria a coragem, a empatia, para defender um travesti morador de rua? Os mecanismos anti-bestafera existem, apenas se tornam eclipsados num mundo frio, individualista e indiferente.
Mais que medo, havia um espanto no olhar do assassino. Um quê de incredulidade. Só agora percebia o sangue nas mãos, o corpo estendido inerte como um molambo usado. Será que se perguntou alguma vez: como pude fazer aquilo?

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Natal

As luzinhas ele colocou numa janela e enfeitou as portas com coroas que imitavam o azevinho. A árvore e seus indefectíveis penduricalhos descansavam num canto desde o início do mês. Atrapalhava a passagem e ainda soltava pedaços pela casa das folhas sintéticas enevadas. Ele gostava desse tempo. De algum modo evocava algo bom dentro dele, mas vago, talvez por percebê-lo distante.
Numa tarde emormaçada, como que a fugir de um tédio que se infiltrava na mente, pegou um gif ou imagem natalina qualquer e distribuiu para algumas pessoas. Fez isso de forma um tanto aleatória e sem muita convicção. Alguns responderam e outros o ignoraram.
Não entrou em nenhum amigo invisível porque estava sem grana e não tinha, afinal, nenhum grupo que lhe apetecesse a troca de presentes ou aquelas falas e sorrisos datados das confraternizações. Dizia o óbvio para aqueles de quem recebia algum cumprimento: feliz natal. Por absoluta falta de criatividade ou vontade de pensar algumas poucas palavras que lhe tirasse daquele lugar comum sem significado para ele naquele momento. Era como uma desrealização ou uma forte sensação de déjàvu. Queria entender os sorrisos febris, mas desistiu.
Pensou em chamar os filhos e os agregados que arrumaram na vida e fazer um jantar diferente. Precisava disso. Percebia um distanciamento deles que, se era suficientemente verdadeiro, era velho, de anos de uma certa ausência que se transformou num distanciamento afetivo traduzido em convenções e hábitos secos. Mandou convites e esperou. Vieram desculpas iniciais de outros compromissos, depois promessas incertas de que passariam lá para dar um abraço. Ele aceitou aquilo resignado, que podia fazer? Acomodou-se à ideia de que no fim apareceriam e seria uma noite alegre.
Pegou-se imaginando na hipótese dos convidados não aparecerem e de repente ver seu celular inundado de desculpas esfarrapadas. Não conseguiu pensar em nada como resposta. Percebeu-se paralisado ante essa possibilidade. Era um cansaço e desilusão. Era absurdo que ninguém viesse, tentou consolar-se. E ele tinha a mulher solícita e outros que estariam por ali para disfarçar que seus convidados não viriam e ele ouviria que o importante eram os que estavam lá e quase se percebeu alegre com essa solução.
De repente sentiu algum arrependimento por ter inventado aquilo. Mas havia comprado presentes e toda aquela quantidade de comida para alimentar um pequeno batalhão de famintos soldados. Temia que tudo se transformasse num desastre. Começou a lembrar de tantos passivos emocionais acumulados. Desfeitas. Malcriações. Falas estúpidas que ainda ecoam vivas e estridentes. Indiferenças. E se tudo aquilo aparecesse junto com os convidados?
Afastou os pensamentos sombrios que começaram rapidamente a empanar sua visão e deixar-lhe um gosto de vômito na boca. Disse para si mesmo que pensaria positivo, afinal era noite de Natal. Teria cuidado com as palavras. Faria de conta que todas as maldades feitas e recebidas não haviam acontecido. Ensaiou mentalmente, como a treinar suas sensibilidades, alguma palavra sardônica que poderia escapar de alguém, elas sempre escapam. Ignoraria, pensou. Só queria experimentar esse momento como se fosse feliz. 

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

É o que não pode ser: não é!

Existe a verdade, a mentira e... a “pós-verdade”. O dicionário Oxford incluiu esta palavra em seus verbetes, destacando-a como a palavra do ano de 2016.
A pós-verdade parece não funcionar no nível intrapessoal. Ela é para ser experienciada na coletividade das redes. Quer dizer, você não pode dizer uma pós-verdade para um amigo. Tecnicamente até pode, mas ela precisa do ambiente virtual para ser transmitida. Isso porque o amigo que diz a pós-verdade não é seu autor e ela nunca se refere à subjetividade do transmissor, nem às suas emoções. Essa é uma característica do termo: ele nasce por partenogênese. É como um miasma que se espalha com o vento.
A curiosidade aguçou, não é? Afinal, o que vem a ser uma pós-verdade? Não é meme, nem hoax. Ela parece uma verdade que se esqueceu de acontecer. Eis a explicação do dicionário. A expressão se refere a um momento no qual as emoções e crenças importam mais do que o fato que é noticiado. Vejam, a pós-verdade precisa de um ambiente propício para aparecer. Quanto mais louco for o momento, mais pós-verdades nascerão.
Todo mundo quer punição de corrupto, então se uma notícia alega que haverá uma ação do exército para acabar com esta pouca vergonha, a ânsia social por justiça ou punição passa a reproduzir esta pós-verdade como se verdade fosse e ninguém está se importando se o Comandante do exército veio a público desmentir o boato ou se não há em nem uma fonte segura qualquer menção ao fato.
A pós-verdade parece uma miragem. Ela pode se manifestar no frenesi político que tomou conta do país, talvez seu principal espaço de disseminação, ou na religião. As pessoas veem coisas que são meras projeções de suas crenças, suas necessidades mal resolvidas. O cérebro busca algo que atenda essa carência e, voilá, a visão se materializa. Daí em diante outros verão coisas também que associarão à sua necessidade brutal de ser diferente, importante, destacado, respeitado, reverenciado, reconhecido e acalentado em sua parca miséria.
Suponho que, no caso religioso, a pós-verdade é a explicação para a maioria das manifestações que se vê na internete. Sinais no céu, aparições angélicas, óvnis, chupacabras, pé grande, criptoanimais... a lista é grande. Para o místico consumidor de pós-verdades, suspeito que vive em fuga da realidade indigesta. Ele se esconde nas nuvens de aparições e relatos fantásticos. A cada volta a terra, depara-se com seu fracasso, seus antidelírios e logo retorna à busca da nova ou velha pós-verdade do momento. Aliás, esta é outra característica da pós-verdade. Ela hiberna e reaparece como novidade de tempos em tempos, basta que os sentimentos se tomem de febre.
Amores doentinhos também criam pós-verdades como no caso daquela situação, contada como piada, em que a pessoa namora alguém platonicamente e no dia em que a outra pessoa namorável descobre, termina tudo. A doença mental pode esconder graves pós-verdades na forma de fantasias que vão das inócuas, até aquelas que dão bons roteiros de terror.
Às vezes é bom acreditar, espalhar uma pós-verdade de estimação para ver se se obtém alguma vantagem. Equivale àquele ditado nordestino: jogar barro na parede, se grudar... O danado na pós-verdade é que ela é diáfana, insustentável, é como folha seca que vagabundeia ao sabor do vento. No coletivo, ela nunca tem referencial nenhum. É de sua natureza ser dúbia, não se comprometer. É quase sempre órfã de pai e mãe.
Então, qual o poder da pós-verdade? Ela diz aquilo que queremos ouvir. Mexe com os sentimentos, especialmente aqueles que são partilhados por comunidades inteiras. Ela é um “como se”. Ela simula a possibilidade do desejo. Ela é uma verdade amputada, mas quem se importa?

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

“O aborto já é livre no Brasil”

“O aborto já é livre no Brasil”, disse o renomado médico Dráuzio Varella, num arroubo retórico no calor da epidemia de microcefalia. Respondia a propósito do dilema que o vírus Zika produziu em milhares de bebês especialmente no Nordeste brasileiro. É correto abortar um bebê que se sabe de antemão ter a doença irreversível?  
Assim se manifestam os formadores de opinião no Brasil. São homens pragmáticos. Às vezes, uns maria-vai-com-as-outras. Veja-se o notório ministro do Supremo, Luís Roberto Barroso, que defendeu o aborto até o terceiro mês – alegou que países modernos não criminalizam o ato até este período – numa manifestação sua em um momento em que o tema aborto era tangencial. Esqueceu que um ministro ou juiz responde ao que está nos autos, na petição, segundo a lei, e não segundo seus pontos de vista.
A frase do doutor, por sua vez, quis dizer que a coisa corre frouxa no país. Que a lei não é suficiente para estancar esta hemorragia de vidas sacrificadas sob todo tipo de desculpa e razão que ele e outros gostariam que fossem válidas e acudidas. Na verdade chama de hipocrisia e falsidade ser contrário ao aborto nas condições que entende serem corretas. Que a iniquidade social permite que algumas mulheres tenham acesso a um aborto em condições de segurança e às mulheres pobres restam as condições que expõem suas vidas a perigos.
Pelo mesmo raciocínio, poder-se-ia dizer que o assassinato está liberado no Brasil, pois afinal, de forma violenta, mais de 50 mil pessoas morrem todos os anos no país. Estas mortes excluem as de acidente de carro, quase a mesma estatística. Não seria exagero, seguindo a lógica do médico, dizer que o assalto endêmico em todos os lugares também está liberado, pois vemos as forças policiais e todo o arcabouço do código penal impotente ante tamanha quantidade de crimes.
Mas Varella não é, suspeito, um defensor empedernido do aborto. Ele é um homem socialmente sensível, digamos. Então, se a mulher pobre precisa abortar, ele defende que ela tenha acesso a um aborto clinicamente seguro. É assim que diz: “A mulher rica faz normalmente e nunca acontece nada. Já viu alguma ser presa por isso? Agora, a mulher pobre, a mulher da favela, essa engrossa estatísticas. Essa morre.”
Sua sensibilidade exclui, por suposto, o feto que é morto, mas absolutiza a mulher economicamente desprovida porque isso aponta para uma injustiça dupla: ela é criminalizada e está exposta ao risco de morrer. É claro que esse tema é importante, pois a lei vigente deve ser para todos, mas o Estado falha em proteger a vida, pois somente uma lei proibitiva não é suficiente. Tem uma lei para reger o tema, mas vive indefinido pelas demandas que as questões sociais reclamam.
O problema é o pressuposto que se evoca para defender o aborto escancaradamente ou ficar em cima de um muro de adobe que ameaça desabar. O feto é iniquamente esquecido. A necessidade, conveniência, razão econômico-social, gritam e então se sente pena da pobre mulher pobre que tem que recorrer a métodos caseiros, para dizer o mínimo, engrossando a epidemiologia de doenças e morte. É uma tragédia. Mas é muito maior a da cultura de morte – o aborto – que impera e reclama aceitação. Será que nossa sociedade é tão parva que não consegue achar uma solução para esse problema tão delicado?
Dráuzio diz que não é favor do aborto e diz que nenhuma mulher quer abortar. Em suas palavras: “É uma experiência absurdamente traumatizante, uma tragédia.” Concordo. Mas erra ao dizer que a mulher não quer abortar. Converse com uma feminista. Quer, sim. Algumas, premidas por suas razões, não pensam nas sequelas físicas e emocionais, estas quase indeléveis. Muitas mulheres usam o aborto quase como método contraceptivo tal a banalidade com que se trata a questão. Ante a vida que está em jogo, não há razão imperiosa que se possa justificar.
Onde a falha? Varella alega, com razão, diferente do débil ministro esquerdista, que o Estado não pode ser culpado de tudo. Ele se referia a conter os atos de pessoas que criam, com sua imbecilidade, ambiente para o mosquito da Zika. No caso do aborto, cabe o mesmo raciocínio. Seria leviano dizer que o Estado não tem qualquer política de controle da natalidade. A questão não é essa. O que ocorre é que premidas pelas mais diversas razões, as mulheres recorrem ao aborto. O que se quer é que toda razão seja válida o que, na prática, equivale a liberar o aborto pela razão que for.
O doutor alega a questão controversa do início da vida como forma de justificar o aborto, não sem ironia, pois critica que a se aceitar a defesa dos contrários ao aborto, espermatozoide e óvulo estão vivos. Em seu argumento, compara o caso de uma menina que teve morte cerebral e que, portanto, pode ter os órgãos doados de forma legal. Morte cerebral significa dizer morte do sistema nervoso que, afinal, além de controlar o funcionamento do corpo, é o sistema que nos dá a consciência, o sentido de existência, a individualidade e unidade de ser. Ora, ensina o médico, “mas até o 3º trimestre de gravidez, não há nenhuma possibilidade de arranjo do sistema nervoso que se possa qualificar como atividade cerebral em qualquer nível, a não ser neurônios tentando se conectar.”
Vejam que coisa! Não há um sistema nervoso maduro, completo, portanto, pode-se matar esta coisa, este amontoado de células que afinal, são só um monte de neurônios tentando se conectar. Parece que o médico não se dá conta do absurdo que diz. Então, sem culpa, sem medo, sem praticar um assassinato, matemos este ente antes que os neurônios se conectem e está tudo bem?
É como quem faz um bolo e coloca no forno. Juntados todos os ingredientes batidos, amassados, temperados, se coloca na forma e logo no forno. Há que se esperar algum tempo até que ingredientes, submetidos ao calor se transformem no bolo. Mantidas as condições adequadas ter-se-há um bolo para ser saboreado. Ele não se transformará em outra coisa. Fatalmente será um bolo. Há um continuum que é descaradamente esquecido pelos defensores do aborto. Logo, parece um tanto cínico defender que se em determinado momento se abortar, não se matou uma pessoa, mas só ingredientes foram descartados.
Como não poderia deixar de ser, o doutor tinha que bater nas forças obscuras representadas pelas igrejas católicas e evangélicas. Seu poder é um absurdo, vociferou. Trata-se, segundo diz, de uma maioria que impõe sua vontade. Respeitar a opinião das minorias é parte da democracia, diz. A tal democracia nestes tempos estranhos virou a panaceia para justificar todo tipo de ideia idiota. Onde a questão fundamental? A de que se trata não de impor uma visão religiosa hegemônica, mas de defender a vida?
Então é de opinião que se trata? O doutor e seus iguais neste tema precisam se definir. Desconfio, porém, que eles estão dispostos em nome de um sem número de argumentos, todos frouxos, exceto aqueles consagrados na lei e que, ainda assim, cabe alguma discussão, a usar qualquer um que se preste para defender seu ponto de vista. Se não conseguirem defendê-lo, pularão para outro numa corrida insana para proteger sua posição.
É evidente que o aborto não se trata de mera opinião. Uma vida está em jogo. Esse é o ponto nevrálgico. Todas as demais condições pessoais e ambientais são secundárias a este ponto de partida.
Dr. Draúzio Varella deu entrevista por telefone à BBC em 2 de fevereiro de 2016

sábado, 3 de dezembro de 2016

Não sois máquina! Homens é o que sois!

Sempre desconfio de quem tem ideias para melhorar a humanidade. Melhorar o design, aperfeiçoar a raça. Sinto um arrepio, pois ouço um eco, não tão longínquo assim, de eugenia a espreitar pelo buraco da fechadura da história.
O fantasma parece muito vivo e mostra a cara sem pudor nas redes, agora nas ruas da Europa e EUA. As razões são parecidas: a imigração descontrolada de refugiados para Europa e a invasão dos latinos nos Estado Unidos. Tudo isso azeitado por um populista que chegou ao poder exaltando o poder branco, muros, misoginia e uma grandiosidade do país que pensa perdida. Ou seria apenas uma retórica oportunista que deu certo?
Talvez seja apenas outra faceta deste admirável mundo novo que a tecnologia promete. Ainda timidamente um movimento começou entre europeus que se dizem transumanos. O que seria esta nova casta de seres trans? São pessoas que acreditam aperfeiçoar e melhorar os seres humanos com o uso da tecnologia. De que forma?  Através de implantes de chips, ímãs, eletrodos que, espalhados pelo corpo, dariam a estas pessoas sentidos mais apurados, sensibilidades fora do comum. No momento, eles acreditam estar coletando dados que comprovam sua controversa teoria.
Uma mulher que adotou a filosofia diz ter implantado mais de cinquenta ímãs em todo o corpo e ponta dos dedos, além de chips, inclusive um que substitui seu cartão de crédito. Alguém sentiu um cheiro de apocalipse? Ainda não é para tanto. A questão parece mais perturbadora do ponto de vista psicológico. Por que alguém quereria superar a dimensão de carne e osso? Que fantasias acalenta uma pessoa que deseja obter uma espécie de transcendência à condição humana com instalações eletrônicas no corpo?
Não é curioso que enquanto pessoas se maquinificam, a literatura e o cinema estão cheio de máquinas que anseiam experimentar nossas humanas emoções? Sugiro a interessante série original da HBO, Westworld.
Suspeito que as pessoas bem resolvidas tem uma admiração e até assombro pelo que somos do ponto de vista psicobiológico. No corpo há um sentido estético. É um instrumento da manifestação da existência. Os transumanistas disfarçam uma insatisfação com a limitação. Seria um tipo de novo de transtorno dismórfico corporal? Uma versão ciborgue da vigorexia? Ou uma anorexia de ser gente?
O avanço da biomecânica associada à eletrônica tem produzido próteses revolucionárias. Mas o propósito é claramente direcionado para dar a alguém a qualidade de vida perdida com uma amputação, por exemplo. O que impede de alguém saudável usar esta tecnologia para se tornar superior? Nada. Mas é de se avaliar se estes homens/mulheres de seis milhões de dólares ou estes Maxsteel são saudáveis emocional e psiquicamente.
A filosofia e a espiritualidade em cinco mil anos de história humana ensinam que a maneira de evoluir é o conhecer a própria alma. O oráculo de Delfos dizia a seus frenquentadores: conhece-te a ti mesmo. Não há maior aventura. A descoberta de nosso universo interior não nos torna superiores, mas humildes. Não nos faz melhores que ninguém, mas irmanados. Resulta também no conhecimento do outro, afinal somos todos do mesmo barro. Transcendemos o humano nos tornando mais humanizados.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Aborto, só o da lei

Faz um bom tempo que os aborteiros foram para as ruas escancarar a defesa de sua prática. A ideia saiu do circuito feminista mais exaltado e ganhou defensores em todos os lugares. A folha de São Paulo, maior jornal do Brasil, defende o aborto. Ditos movimentos sociais também fecham fileiras, mesmo que nada tenham que ver com o tema. Partidos de esquerda, que são oportunistas como hienas, tem o aborto como bandeira. Conselhos profissionais como o de psicologia, são usados em suas publicações oficiais para aumentar o coro de gritos assassinos.
O que é mais incrível é que toda essa defesa aguerrida da morte vem envolvida em três argumentos básicos que parecem bons, mas ante a sacralidade da vida não passam de sofismas mal intencionados. É como envolver cocô em papel de presente e dizer que é algo especial, mesmo que não se consiga disfarçar o mau cheiro, no caso aqui, de cadáver.
A primeira falácia é a mais gritada em passeatas, fala de uma suposta autonomia do corpo da mulher. Aparece muito frequentemente na expressão: meu corpo, minhas regras. Sob qualquer ponto de vista que se olhe, o da mera lógica, por exemplo, este argumento soa uma contrafação. É narcisista. Egoísta. Indiferente. Sem compaixão e misericórdia. O segundo argumento é o do dano psíquico que a imposição de uma gravidez dita “não desejada” provocará na mulher. O terceiro argumento apela à saúde pública, pois as mulheres que desejam realizar o aborto precisam recorrer aos matadouros clandestinos sob o risco grave de morte, como já ocorreu, com consequências para a saúde da mulher, enfatizam.
A coluna aborteira tem usado de tudo para driblar a lei ou afrontá-la. Já se tentou, inclusive, forçar o SUS a realizá-lo mediante a mentira mais deslavada usando uma possibilidade da lei. Vale o que a mulher diz. Se ela declara que foi estuprada, possibilidade prevista na lei, ao lado da tentativa de salvar a vida da mãe (artigo 128 do CP), o médico estaria obrigado a realizar o aborto com o dinheiro público. A se julgar por estatísticas indiretas que alegam acontecer mais de um milhão de abortos por ano no Brasil, os hospitais do SUS teriam grande parte de seus centros cirúrgicos, que fazem um enfermo esperar meses na fila, ocupados com abortos.
Há uma terceira forma de aborto não punível, este resultado de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que é o caso de bebês anencéfalos. A decisão em 2012 teve o voto de larga maioria dos ministros, 8 votos a 2. Está provado que a má formação não é compatível com a vida e que mesmo nascendo, a maioria absoluta dos bebês nesta condição não sobrevive mais que algumas horas.
Mas eis que o STF legislando contra a lei estabelecida, retira da cartola uma novidade. A coisa é de um absurdo tal, um avilte, que se legislasse ainda que em tema que dissesse respeito ao aborto enquanto prática, seria menos errada. Um caso de prisão por prática de aborto prendeu a mulher e o médico. Os advogados de defesa apenas pediam habeas corpus para seus clientes. Mas nisso o ministro Luís Roberto Barroso viu uma chance para sua impostura homicida, ele que é conhecido postulante da causa aborteira. Pois contrabandeou suas ideias para seu despacho e decidiu, contra a lei, que aborto até o terceiro mês de gestação não é crime. Primeiro, ninguém pediu sua decisão sobre isso. Segundo, ele avançou sobre o Legislativo sob o falso argumento, mas que sempre parece moderno e avançado, que países tais e quais não criminalizam abortos até aquele período da gravidez. A coisa beira a desfaçatez.
Aguerrido de ideais vis, avançou sobre a própria lei com manifesta acidez: “Ter um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher.” O que esse tolo não considera é que abortar também se torna um peso de culpa doentio e angustiante na vida das mulheres. Mas muito mais grave, pois uma vida foi destruída para sempre. É melhor matar um ser indefeso que se cuidar da mulher que, por razões que sejam, sofre com a gravidez que não quer?
O ministro foi seguido por dois outros: Rosa Weber e Luiz Edson Fachin. Os três são ideologicamente afinados com a esquerda. A Câmara reagiu. O presidente Rodrigo Maia acusou o golpe e criou uma comissão que revisará a malandragem do ministro que quer que a lei diga aquilo que combina com suas aspirações tortas. Um juiz, seja qual for, segue a lei, não a estupra ou a ignora como foi o caso. Barroso, ao ceder às suas posições pessoais se torna, ao decidir sobre o que não lhe foi pedido, a medida de tudo.
Parte da imprensa – grande parte dela é aliada dos aborteiros – criticou a reação do Congresso diminuindo-a como se fosse coisa da bancada evangélica, expressão que se tornou símbolo do que julgam ser o máximo de reacionarismo, fundamentalismo e ignorância. Nesse caso, é pura dissimulação. Não importa quem tenha estrilado, a lei foi agredida porque quem deveria segui-la, aplicá-la com lisura e defendê-la não o fez, mas usurpou um papel que não lhe pertence. A lei está valendo. Não foi abolida, nem retificada. Siga-se a lei.
Talvez pressentindo que a coisa não lhe sairia barato, ou que seria contestado, o ministro Barroso condescendeu. Afirmou que o aborto não é algo bom, e que o papel do Estado é evitá-lo. E ensinou: com educação sexual, distribuição de contraceptivos e apoio às mulheres que desejarem manter a gravidez. Como se o Estado brasileiro não fizesse nada disso.
Percebam a frase “apoio às mulheres que desejarem manter a gravidez”. Eis aqui o raciocínio finório. Ele deixa subentendido que o Estado deve apoiar as que querem, mas, evidente, também as que não quiserem. Afirmá-lo, contudo seria demasiado e ele deixou as reticências.
Os que amam a vida, os que, sim, se condoem das condições miseráveis que muitas mulheres vivem, devem defender alternativas para a vida. A criança não desejada, inesperada, deve ser acolhida independente de qualquer coisa. Importa a mulher, mas importa igualmente o ser que carrega no ventre. A legislação brasileira ampara a vida e não a morte.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Aluga-se um conversador

Como se explica o sucesso do Facebook, a mais icônica das redes sociais, e as demais congêneres? As pessoas adoram se comunicar. Gostam de falar, de ouvir histórias. Não importa o meio que medeia a comunicação humana, falar com outra pessoa é algo que fascina e atrai.
A comunicação pode ser feita em rede, em que alguém pode se gabar de ter “um milhão de amigos” ou tête-à-tête; conversar é a forma mais eloquente de demonstrar nossa humanidade. Quanto mais falamos uns com os outros, mais humanizados nos tornamos. Assim que, quase toda estratégia, quer se torne um negócio ou não e explore formas de contato, está, quase sempre, fadada ao sucesso.
O que torna comunicar-se algo tão incrível e, às vezes, desafiador, é nossa habilidade com a fala. Pesquisa recente demonstrou que ambos hemisférios do cérebro participam do processo. A linguagem é fruto das representações perceptuais, de uma interface sensório-motora e da produção de representações. É mágico! Pois não se trata só de produzir sons, mas a eles conferir significados. Daí porque a carta da filha ou da irmã da Mariana nos toca a todos e nos leva a visitar emoções e a produzir um senso de identificação.
Cuidado, porém. Nossa percepção é cheia de meandros e armadilhas. Nossa limitação na apreensão de informações pelos sentidos pode criar interpretações (representações do real) equivocadas e gerar distorções cognitivas que parecerão verdades e, por isso, fundamentarão conclusões (falas) erradas. Os ruídos na comunicação nascem porque damos pouca importância à percepção do outro. O que ele/ela quis mesmo dizer? Que bloqueios, defesas, resistências estão em mim que tornam minha audição seletiva, meu olhar viciado?
A despeito disso, ter com quem conversar é ainda a maior aventura que alguém pode viver. Pois, imagine, você vivencia algo fascinante, mas não tem com quem dividir e compartilhar. Digo, alguém que lhe ouça de verdade, não aquele que quer apenas a chance de se contrapor com algo ainda mais maravilhoso porque, no fundo, ele compete com você.
O narcisismo epidêmico torna a conversa com o outro uma mera desculpa para ser protagonista de tolas realizações que o narciso de plantão considera excepcional e, quase sempre, é, se muito, pouco mais que medíocre. O mundo de competição desvairada torna o outro simples desculpa, não alguém por quem se tem verdadeiro interesse.
Isso talvez explique o sucesso de um ator americano desempregado. Ele se tornou people walker. Por uma milha, pouco mais de um quilômetro e meio, ele cobra sete dólares. Sim, você percebeu bem, é o espelho reflexo do dog walker. Com uma diferença fundamental: não precisa coleira, nem esperar seu amigo se aliviar em um poste. O autor da ideia diz que não é sobre caminhar, é sobre conversar. Bingo! Ele tem fila de espera e a ideia já começa a se espalhar por outros países. Celulares e computadores com suas cornucópicas possibilidades de comunicação são meios fantásticos, mas nada supera a voz sem intermediários, o olhar no outro, a captura de todas as sutilezas no tom da voz, dos micro movimentos faciais.
As pessoas anseiam por conversar de verdade. Isso significa ser ouvido e falar e nisso se produzir uma espécie de autenticação de nós. Eu ousaria dizer que os fracassos nas relações estão nos vazios de voz, no silêncio punitivo, na gritaria generalizada em que ninguém ouve mais ninguém, na falta de pausa para ouvir, na educada espera surda para dizer apenas o que se quer dizer sem o mínimo de trabalho de compreensão do outro.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A quarta revolução industrial mudará a humanidade como conhecemos?

Quando olhamos os vários projetos em andamento de carros autônomos, de veículos de passeio a caminhões de carga, temos aí um minúsculo vislumbre de uma revolução que caminha célere, mas para a maioria das pessoas leigas, mal se pode divisar seu alcance. O mesmo está acontecendo com drones que são capazes de sair de sua base, realizar uma entrega e retornar ao ponto de partida. A Amazon testa um sistema próprio. Os Correios da Suiça realizam algo parecido.
Se somarmos a onipresente rede mundial de computadores, à inteligência artificial e à internete das coisas, podemos começar a perceber que o mundo tal qual o conhecemos está prestes a dar uma virada, sofrer uma mudança de paradigma que colocará em cheque o próprio entendimento do que é indústria, emprego, relações de trabalho e, consequentemente, as relações humanas.
Está em curso, agora mesmo, a revolução industrial 4.0. Se você imagina que isso diz respeito apenas ao mundo da economia global e que nada tem com sua vida, está enganado. Um comercial até certo ponto discreto do Banco do Brasil, não que outros bancos não estejam fazendo o mesmo, dá uma ideia do que falo. Dentro em pouco, as agências físicas serão mera lembrança. Milhares de empregos – fala-se em quinze mil – serão ejetados e não há o que fazer a respeito.
Entre os países desenvolvidos, espera-se que a quarta revolução industrial dizime com cinco milhões de empregos. Assim como centenas de profissões desapareceram na esteira dos avanços anteriores. Não há retorno. A diferença em relação às mudanças anteriores, alertam os estudiosos, é a velocidade e a abrangência com que esta nova revolução acontece.
Uma faculdade patrocinada por Xavier Niel, empresário milionário do setor de tecnologia, a universidade 42 – este é o seu nome, pois é o número da resposta ao sentido da vida do clássico O Guia do Mochileiro das Galáxias –, está ativa na França e EUA e vem chamando atenção. Não há professores, nem livros e é gratuita. Para esta próxima temporada receberá mil alunos. Ela ainda está circunscrita ao mundo da informática, mas chegará, pode apostar, nas demais áreas.
Este mundo maravilhoso para alguns ou assustador para outros, exigirá transformações em nossas formas de comprar, vender, trabalhar e construir a sociedade que conhecemos. A questão é: estamos preparados para a velocidade de lebre, enquanto nossos sistemas cognitivos-emocionais, culturais e relacionais andam a passo de tartaruga? Ser disruptivo é o padrão que está sendo imposto às pessoas, mas podemos sê-
Fala-se em “darwinismo tecnológico” nessa nova era. Quer dizer, quem não for capaz de acompanhar, será descartado. Noutras palavras: não terá acesso às “maravilhas” desse mundo novo. Mas o que é mesmo ser descartado ou se inserir nesta nova realidade? Não se sabe ainda. A utopia sugere que se energias limpas, drones, robôs, impressoras ou fábricas inteligentes, farão todo o serviço, o que faremos nós?
Como dizem os americanos: There is no free lunch. Onde há ganhadores, há perdedores. A questão, porem, é mais grave que esta simples contabilidade. Diz respeito a nossa própria identidade, e nem será necessário a construção de ciborgues mezzo humanos, mezzo máquinas, tão comuns nos filmes de ficção científica. Tem a ver com nossa humanidade mesmo e as maneiras de expressá-la. Nem será necessário chegarmos a um mundo como o Blade Runner em que esta fronteira entre máquinas e homens estará borrada.
Que doenças psíquicas nos aguardam como efeito colateral desta revolução? Que manifestações emocionais adotaremos neste processo adaptativo radical? Esta desafiadora situação criará castas sociais? Viveremos em guetos separados não por condição social, mas por uma forma de ser e falar, além de interagir uns com os outros? Precisaremos rever o que se entende agora por humanidade?

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Música chiclete é um saco!

A experiência é muito comum. Você ouviu uma música que, a julgar pelo seu gosto musical, até deve achar horrível, mas ela grudou em sua mente e não sai. Ao contrário, horas depois de tê-la ouvido, para sua surpresa você se pega cantarolando a melodia que parece enfeitiçada. Você refreia a boca, mas o cérebro continua cantando. Como é possível?
Pesquisa recente da psicóloga inglesa Kelly Jakubowski, explica porque acontece este fenômeno e ainda, como fazer para se livrar da música chiclete. Músicas com repetições de refrões curtos e monossilábicos – lembrou do axé e seus muitos gemidos e onomatopeias, acertou – facilitam que seu córtex cerebral auditivo registre com mais facilidade.
O remédio, curiosamente, é ouvir uma música de estilo totalmente diferente e, se possível, mais sofisticada, o que força o córtex a se distrair e focar em novas nuances melódicas e então faz-se a mágica da deleção da música grude. Outra técnica que parece ter saído de dizeres dos antigos, é ocupar-se com alguma atividade envolvente. É que se descobriu também que as tais músicas incomodam mais quem está entediado ou sem fazer nada. Mente vazia...
Quisera fosse tão fácil com os problemas que nos assediam a cabeça, perturbadores, tenazes como cães perdigueiros. Crenças que simulam a verdade. Pensamentos que parecem vir repentinos do nada. Tomam de assalto sua mente consciente como vândalos celerados.
Mas há alguns paralelos que convém aproveitar da descoberta da pesquisa mencionada. Como na música, não adianta tentar forçar esquecer. Como se fôssemos teleguiados ou possuídos por força alheia à nossa vontade, a música continua tocando dentro de nossa cabeça, os pensamentos repetindo o medo, criando cenários ou buscando explicações. É assustador. É assim que sofrem as pessoas com transtornos diversos.
Uma verdade antiga, mas melhor conhecida hoje, mostra que os pensamentos são só isso: pensamentos. Não são a realidade. Os que mais machucam quase sempre sequer tem relação com o real. Quer dizer, não existe uma relação de causa e efeito, apenas estão lá ameaçadores, provocados por circunstâncias atuais ou vividas, mas que não são a causa verdadeira do sofrimento, mas as expectativas ruins que simulam.
A música grudenta, por mais chata que seja, é inofensiva. Os pensamentos disfuncionais, não. Eles torturam. São como chicotes estalando no lombo. Eles merecem atenção quando começam a produzir comportamentos que claramente percebemos como disfuncionais. Quando nunca vão embora e exigem sempre uma ação aliviadora. De fato, aí se instalou um circuito pernicioso que perturba a vida inteira. Mais: afetam as pessoas ao redor de nós.
Essa é a diferença para um pensar diante de um problema real e difícil, para o adoecimento. Aquele desemboca em decisões resolutivas, o outro em paralisação. O primeiro se relaciona com a realidade, o outro está apenas no mundo mental.
É possível que pessoas bem resilientes se resolvam. A maioria de nós, infelizmente, não tem esta característica, precisa aprendê-la. Alguns aguentarão até o ponto da exaustão. Outros vão se desminlinguir em atitudes defensivas e evitações que, na verdade, é fuga da própria condição em que se encontra.
Pensar positivo pode ajudar, mas não simplesmente como uma Pollyana. O pensar precisa ter um sentido no presente. Pede conjunção carnal com ações, que é quando se percebe o sentido completo das coisas.

domingo, 30 de outubro de 2016

Paz e contentamento

Experimente ficar em silêncio num lugar calmo por dois minutos. Perceba sua mente e o enorme barulho que ela faz. Os pensamentos lhe atravessam como comboios zuadentos, fervilhantes como uma rodoviária. Você pesca algo e mal se dá conta e outra coisa já o substituiu. Então um desassossego se insinua, porque você percebe que não é capaz de registrar, entender, explicar tantos pensamentos juntos. O barulho se torna ensurdecedor e você se levanta e liga a tv, põe o fone de ouvido para ouvir uma música enquanto liga o computador para ver algo na internete.
Ficar a sós consigo mesmo é um baita desafio. Perceber-se quase sempre é deparar-se com as inquietações cotidianas e, se alguém é suficientemente sensível, aquelas outras transcendentes e definitivamente mais sedentas por respostas que não temos. Alguns chamam isso de solidão. É como diz Mia Couto de um de seus personagens: “Tinha tanto medo de solidão que nem espantava as moscas.”
É possível se ouvir sem medo, sem querer tapar os ouvidos pelo incômodo da gritaria? Os orientais descobriram a meditação como forma de enfrentar esse caos interno. Os filósofos, a busca da verdade e do bem viver. Os cristãos, a contemplação nos espaços ermos do deserto. Hoje, um método prático é a Atenção Plena. É uma forma de meditação que tem como principal característica se ouvir e observar os pensamentos como se se visse um filme de imagens aleatórias, sem roteiro e trilha sonora. Cada um deles é só observado sem que lhe atribuamos significado, valor, ou busquemos – desesperados – explicação. Não é, contudo, panaceia. Funciona com dedicação e compromisso. Se assim for, ela nos dará – nós nos daremos – o seu melhor.
Resultado: mente mais clara, uma paz que vem porque não há pressa nem pressão para se reagir aos pensamentos. Eles são passantes como pessoas numa rua, anônimos que são para nós. Onde há mais paz, a alegria e o contentamento podem se imiscuir naturalmente.
Prefiro contentamento à felicidade. A felicidade pede busca como um bem que se compra ou se conquista e que coisa mais distante da verdade! O contentamento é forjado na escassez, na falta e na abundância, porque entende que nada na vida é permanente. Manoel de Barros parece se referir a isso: “Sou muito preparado de conflitos.” A felicidade é uma Carmem Miranda: esfuziante, viva, alegre, mas o show acaba uma hora. A felicidade tem a pretensão da permanência. Um feliz “para sempre” particular.
O contentamento vive a inteireza da vida. Acolhe o que vier. É incansável. E outra vez me lembro do Mia Couto que diz que “Não viver é o que mais cansa.” Paulo, o apóstolo, fala de um estado de contentamento. Nele significa autossuficiência, independência das coisas externas que pudessem perturbar sua paz interna. Ele reflete Sêneca que afirma que feliz é o homem que se sente contente em quaisquer circunstâncias que se encontre.
A felicidade pressupõe algo estático. Algo alcançado. Um destino. O ideal que se anseia por entre os fazimentos dos dias. A felicidade está no futuro e num lugar. A felicidade é coisa. O contentamento é a travessia. Sugere movimento. Ancora o hoje. Nunca se chega porque ele é desfrutável apenas no momento presente. É um estar e ser. O contentamento é aprendizável. Serpenteia os obstáculos. Respira gratidão.
Estar a sós é uma arte aprendida, necessidade nascida, cultivo de si. Pede disciplina que, como canta Renato Russo, é liberdade. Pede entrega. E “Repetir repetir — até ficar diferente.” Como sabia bem Manoel de Barros.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

High Five

“Hoje é o dia mais orgulhoso da minha vida. Eu consegui tirar uma foto me cumprimentando.” Não fosse a segunda parte da frase, qualquer um juraria que o autor estivesse falando da descoberta da cura da Aids, por exemplo. Ao ler a segunda metade, ficamos confusos até vermos a foto que ilustra o tweet do gênio. Um cara faz um “high five” em si mesmo enquanto seu celular flutua no ar. O sujeito inaugurou um novo tipo de selfie.
Imediatamente o ato genial começou a ser replicado e outras selfies foram aparecendo na rede. Não se sabe o destino dos celulares que, possivelmente, se espatifaram no chão se o copiador não colocou um anteparo macio para aparar o celular que era atraído para o chão a 10m/s2.
Ao mesmo tempo, uma onda de palhaços aterrorizantes mostravam suas caras horrendas por vários países. Algo que começou, de novo, nos EUA e não se sabe dizer com que propósito. Câmeras de segurança passaram a registrar estas criaturas, alguns com armas na mão, o que gerou uma reação, pois hordas de caçadores de palhaços se formou em igual velocidade.
Este fenômeno bizarro é só um dos que a comunicação instantânea está produzindo no mundo. Imitar é uma das formas básicas de aprendizado. Assim as crianças desenvolvem suas habilidades em seus primeiros anos de vida. O Benchmarking é outra forma positiva de uso da imitação. Mas que dizer daquele tipo de comportamento  desse homo virtualis?
Uma característica do fenômeno, especialmente nas redes sociais, é que ele é inócuo, estranho e inútil. Nem tanto. Outra moda, tirar selfies em lugares perigosos, matou alguns de seus praticantes. Quem o faz pela primeira vez, busca de forma desesperada destacar-se de alguma maneira da grande massa amorfa de gente. Anseia por algum tipo de reconhecimento. Não importa se seu “grande” feito não tem qualquer contribuição positiva para a humanidade. Que se reduza a mera curiosidade que será imediatamente substituída por outra excentricidade.
No fundo, o desejo de ser diferente da manada por meio de um feito extraordinário leva as pessoas a este tipo de postura. A fala hiperlativa do jovem no início desse texto dá uma ideia. A repetição dos demais depende do sucesso alcançado. Se falta criatividade para muitos, pode-se sempre conseguir um pouco da glória de outro, quais rêmoras amalucadas.
As redes são a grande vitrine. É o palco do narcisismo que em todos habita em menor ou maior grau. Um ato replicado nos mais longínquos lugares do mundo confere a seu idealizador um status de grandeza, ainda que efêmero, que dará por momento um significado a sua vida reles. Não a vida da pessoa, mas como esta se manifesta no cotidiano repetitivo e com pouca emoção, única maneira de como muitos se sentem vivos.
Pessoas melhor resolvidas passam ao largo dessa corrente de atos insignificantes. Não porque sejam pretensiosas, alheias ou enfatuadas, quando não, luditas. Mas porque tem o que fazer com aspectos mais transcendentes. São aqueles que estão mais tempo no mundo real das relações, da troca afetiva, da experiência visceral. Não usam a tecnologia como fuga, um espaço da fantasia, da simulação de um eu idealizado, mas como um meio...
Estas ondas passarão tão rápido quanto apareceram. Outras virão, cada qual com sua estranheza, mas no fundo são só pessoas desejando desesperadamente um pouco de aceitação, um bocadinho de reconhecimento, alimento que almas carentes precisam para se autenticar.

domingo, 9 de outubro de 2016

Diagnóstico de depressão pela fala

Um software chamado SimSensei, desenvolvido pela Universidade John Hopkins (EUA), é capaz de diagnosticar depressão pela fala. A ideia despertou debates contra e a favor. Em defesa do soft, a sua suposta objetividade ao detectar o transtorno. Contra, o questionamento de substituir um profissional habilitado na avaliação.
Os próprios desenvolvedores minimizam e dizem que o programa seria apenas um auxiliar. Uma ajuda no exagero de diagnósticos que hoje campeia no mundo da saúde mental. Este temor foi aumentado quando em 2013 foi lançado o DSM V, o manual de doenças mentais usado nos EUA e aqui no Brasil por boa parte dos profissionais, embora nosso sistema de saúde se referencie pelo CID 10.
A grande discussão é que não existe mais nada normal. Qualquer coisa que se manifeste com alguma repetição ou consistência diferente daquilo que se pensa normal, logo se inclui no DSM como doença. A indústria farmacêutica se aproveita; os médicos não medem limites e enquadram o paciente na mais nova doença da classificação. De repente, há uma sensação de que todos tem o mal suposto, quando há pouco este nem aparecia em nenhuma estatística epidemiológica.
Allen Frances, psiquiatra que trabalhou na edição do DSM IV, diz que naquele momento se tentava conter a inflação de diagnósticos e que foi, critica, abandonada nesta edição. O autor de “Voltando ao Normal” (Versal Editores) esteve no Brasil em setembro para lançar seu livro. Em entrevista, disse que milhões de americanos são prejudicados com diagnósticos e tratamentos desnecessários. Imagine no Brasil.
Como psicólogo, não raro me deparo com clientes que vem com uma farmácia a tiracolo e um diagnóstico no mínimo apressado. Uma cliente mais esperta disse: “A médica disse que tenho transtorno bipolar. Eu fui à internete e li os sintomas e não me encaixo neles.” Mas estava tomando os remédios receitados pela psiquiatra. Outros nos desafiam a dizer que eles têm determinada doença, só porque, ao contrário, leram na internete e percebem que se encaixam perfeitamente.
Uma ressalva. A internete é excelente fonte de informação, mas nem todos sabem extrair dela uma interpretação correta das informações. No caso da mulher aqui mencionada, ela tinha razão. Então, os profissionais da saúde mental tem que redobrar seu cuidado. Um diagnóstico pede paciência, ampla exploração dos sintomas, da história de vida do paciente.
Infelizmente, ainda não há disponível para consumo dos profissionais exames clínicos acima de toda dúvida. Existem estudos avaliando marcadores biológicos promissores, mas ainda não validados para a prática clínica. Psicólogos tem testes diversos que são bons indicadores de alguns transtornos, mas também exige cautela para não se sair rotulando uns e outros por aí. O engraçado é que boa parte das pessoas se auto-rotula das mais diversas manifestações psíquicas quase como um diferencial dos demais.
Será que toda manifestação psicoemocional tem que se encaixar num transtorno? Frances diz algo interessante: “Temos de aceitar que nem toda angústia humana é transtorno psiquiátrico e que não há uma pílula para cada problema. Muitas emoções e comportamentos são simplesmente parte da natureza humana.” Disse tudo. Mas como lidar com os desacertos nossos?
Desconfio que estamos nos formando que nem bolo. Põe fermento, leva ao fogo e cresce. O problema é que se coloca de tudo dentro desse bolo e o resultado é gente solada. Aceitar, aprender a lidar, conhecer-se: são remédios mais duradouros e necessários. O danado é que exige trabalho, enfrentamento. Quem quer isso?
De volta ao SimSensei. O programa procura na expressão verbal uma voz monótona, plana, sem expressão, afirmam os autores. Os deprimidos falam arrastado, gaguejam, fazem longas pausas. A lentidão psicomotora é sintoma da depressão. Tudo isso é verdade, mas há deprimidos que não se encaixam nesses sintomas. Há pessoas deprimidas com características distímicas (depressão com sintomas mais leves) que levam anos assim e todo mundo pensa, inclusive o próprio, que ele/ela é assim mesmo.
A tecnologia ajuda, mas sendo a depressão uma doença multicausal, inclusive associada à ansiedade e até com acatisia – sintoma em que a pessoa não consegue ficar parada, sentada devido a uma profunda sensação de desassossego. Depressão é multifacetada, só por isso exige muita cautela em seu diagnóstico.
O sintoma mais típico da depressão, a tristeza, pode ser apenas uma espécie de tristeza que qualquer um de nós terá só por causa de nossa humana condição. Não sei se concordo com a ideia defendida pelos autores do programa de que é melhor um diagnóstico errado do que nenhum quando existe a doença, ressalvam. Ora, mas aí o diagnóstico não foi errado.

sábado, 1 de outubro de 2016

O tempo não está do seu lado

Acho que não sou injusto com Eckhart Tolle se reduzir seu “O poder do agora” a essa frase: o passado e o futuro não existem, existe apenas este nanossegundo em que você está. O escritor é o guru da vez. O livro vendeu milhões de cópias. As falas sobre sua obra são superlativas. O The Independent disse que ele é o homem que vai mudar sua vida.
Merchandising à parte, o autor redescobre uma velha ideia que está presente na filosofia e na religião. Bem, e na psicologia que é meio filha das duas. A afirmação de que só há este momento e no exato instante enquanto escrevo ele já não é mais, é provocante. Ela desafia nossa forma datada de viver, mãe de todas as ansiedades.
Estar no instante presente nos coloca plenos naquilo que realizamos e expulsa o automatismo com que fazemos quase tudo. Nosso cérebro pensa continuamente, mas refletimos sobre nossas ações? Temos verdadeira consciência de nossos atos? Os pensamentos atravessam repentinos aos milhares uma fresta consciente. Quase não notamos, exceto aqueles que ganham adjetivos, um valor, e se tornam preditivos, fazem nascer expectativas, mas quase sempre na forma ansiogênica.
Curioso que doenças como ansiedade e depressão têm, fundamentalmente, uma dimensão temporal. A primeira lança sua vítima para um futuro do qual se quer garantias agora, o controle, a certeza. A segunda arrasta para um passado em que todas as dores, ou algumas em particular, se tornam pesos descomunais a puxar o frágil barco para o fundo dos sumidouros da água. Elas matam o presente que só é percebido em forma de desprazer, agonia e dor. Lembro Gil. “Não se iludam, não me iludo. Tudo agora mesmo pode estar por um segundo.”
Jesus, em seu discurso do Sermão do Monte, ensina (parafraseio): em vez de andarem ansiosos com o vestir, olhem os lírios do campo, pois nem Salomão teria se vestido como um deles. A planta é frágil, de ciclo curto, então se não se olhar, vai-se perder a beleza, a delicadeza e o perfume da flor. Ele se referia ao zelo e cuidado de Deus com os seus, mas entendo que sugere um olhar para fora, em vez de um estar ensimesmado com as falhas e faltas que ainda virão.
O agora, a que se refere Tolle, dialoga com o Kairós. O tempo exato da oportunidade, nem mais, nem menos. O instante propício que não depende de nossa vontade ou desejo. Ele nos é dado como um presente. Por isso se chama tempo de Deus. O cronos, outra ideia de tempo, é nosso domínio. Como o deus que lhe deu nome, ele devora tudo, inclusive seus filhos. Temos nele sempre a sensação de perda e projetamos nossas ilusões de controle, corremos em busca dos desejos. É cheio de nomes: segundos, minutos, horas, dias meses, anos... Com ele nos medimos e de tal sorte nisso estamos focados que só nos esquecemos dele quando fazemos algo realmente significativo. Então, quando voltamos ao tempo, nos damos conta de que ele escorreu e não percebemos, mas sem sofrimento, apenas admiração.
O cronos vende cosmético, movimenta uma roda de dinheiro, faz promessas de retardar o inexorável e, alguns ousados, juram parar o tempo. Mas ele é um indiferente a nós. O grande drible contra o tempo tirano é dar-lhe pouca importância. Focar no ato, na ação do presente, que é quando validamos nossa existência e a ela damos uma dimensão transcendente. É a única forma de nos manter inteiros, doutro modo, como é comum, estaremos divididos entre a versão de ontem e a de amanhã de nós. “Time is on my side”?