domingo, 20 de dezembro de 2009

Homem com homem, dá lobisomem

Dois homens se casaram em uma cerimônia religiosa no último dia 21 em Caetés, no interior de Pernambuco, e agora são acusados pela igreja de enganar o padre. O religioso afirma que não sabia que a noiva era na verdade um homem e diz que vai anular a cerimônia.
Fonte:
DA AGÊNCIA FOLHA 
Paloma, chorosa, de quando em vez levava o lencinho bordado ao canto dos olhos e enxugava as lágrimas que corriam com delicadeza para não borrar a maquiagem. E agora, o que eu vou fazer? Que vergonha, meu Deus! O sonho de uma vida jogado fora assim, sem mais nem menos. Mas a senhorita há de convir que o padre... Contemporizou o delegado. Ao mesmo tempo ordenou ao seu ajudante. Severo, tira este monte de gente daqui se não eu perco a paciência e ponho todo mundo em cana. Doutor, não há lugar pra tanta gente. Eu sei, é só uma ameaça.
Paloma, ainda tristonha. Doutor delegado, a vítima aqui sou eu. Meus 450 convidados apenas vieram me dar apoio neste momento tão triste de minha vida. E desabou aos soluços nos braços de seu noivo, o ajudante de pedreiro, Maicon Jéquison. Oh, Maicon, o que vou dizer lá em casa? E a festa com banda ao vivo que contratei para a recepção? Ei, cuidado com meu vestido seu sem educação, o aluguel foi 400 reais. Paloma foi à delegacia com o vestido de noiva, dois dias depois da cerimônia frustrada. O noivo disse que ela não queria tirar até que fosse casada conforme queria. Na igreja, com entrada triunfal e a clássica música. O padre permanecia calado e visivelmente aborrecido.
O delegado Porfírio voltou-se ao padre. Como é que o senhor soube? Um passarinho me contou. Seu padre, eu não quero saber se foi um passarinho ou um urubu que lhe contou. Perguntei como o senhor soube, porque estou curioso como é que o senhor não sabe a diferença entre... bem, o senhor sabe. O senhor deveria perguntar aos convidados. São todos cúmplices de uma farsa. Eles sabiam que o sagrado sacramento não podia ser realizado entre entes, estes... sei lá que diga. Uma heresia. Um desrespeito com a casa de Deus. Queriam enganar Deus, essa é que a verdade. Mas, padre, o senhor não investiga, não dá uma palavra aos noivos, não pede documentos?
O padre pensava em como responder quando foi atalhado pelos berros de Paloma que ainda estava inconsolável. O delegado se distraiu, por momento. Severo, dá um copo d’água pra moça. Não Severo, deixa. Ô rapaz! Eu?! Sim, tu, seu desmiolado. Cuida da tua noiva e vamos acabar com esta histeria aqui. Isto é um lugar de respeito e eu estou conduzindo uma investigação.
Desculpe doutor, é que Paloma é muito sensível, tadinha. A decepção foi muito grande. Estou é você, rapaz, me faz um papelão desses, disse o delegado enfadado. Será possível que você também foi enganado? Não, doutor. Olhe, todo dia a Paloma passava lá na obra. O senhor sabe, eu mandava uns assobios pra ela. Gritava. Ê gostosa, tu não quer ser a mãe de meus filhos? Essa é a nora que minha mãe pediu a Deus. Essas coisas. E ela, toda sirigaita, cada dia passava com uma roupinha mais safada. Né não, Paloma? Paloma esboçou um sorriso envergonhado. Eu vi que ela estava dando mole, então resolvi encarar. Teus colegas não diziam nada, não? Dizer o quê, doutor? Eles estavam é com inveja.
Então, padre? O senhor estava se explicando. Doutor, essa história já foi longe demais. A Paloma é bonitinha – condescendeu o padre – mas este casamento não pode se realizar. E o dinheiro que eu paguei, o senhor vai devolver? Decabelou-se Paloma, a esta altura já sem véu e com a voz um tanto grossa para sua delicadeza. A verdade delegado, é que ele só se interessa pelo dinheiro. Não pergunta nada, não diz nada. Eu só conheço a tesouraria da igreja que a filha dele é responsável. Sei, confirmou o delegado.
O que o senhor me diz, padre? Nossa sacrossanta igreja ortodoxa, católica bielo-russa, é mais liberal é verdade, mas eu fui enganado, dinheiro pago não se devolve e casar homem com homem nem se um anjo mandar. Ademais, não pedimos para ver as partes pudendas dos noivos. Fomos enganados. O casamento está anulado. 

domingo, 13 de dezembro de 2009

Da m... eu também vim




No momento em que correntes do PT se digladiam em alguns Estados diante da resistência de alas do partido à aliança nacional com o PMDB e seu impacto regional, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva aproveitou sua passagem ontem pelo Maranhão, reduto dos Sarney, para reiterar a importância do pacto com os peemedebistas e pregou a necessidade de pragmatismo político.
“Tem que conversar com quem tem voto. Não se trata de ter amigos ou não ter amigos. Não se trata de ter afinidade ideológica ou não ter afinidade ideológica. Se trata do pragmatismo da governança”.
Fonte: Folha de São Paulo

O Planejamento

O prisidente vai chegar e tem que tá tudo beleza. E o povo? Que povo? Bobagem, para ver o prisidente todo mundo vai. Olha, né melhor garantir? Vamo pegar uns ônibus e entupir desta galera que não tem o que fazer e pronto. Mas eles têm que ganhar alguma coisa, né não? Camiseta. Pobre adora camiseta. Um boné. É...
Ei, não pode faltar criança. Vamo pegar na escola. Será que a imprensa azeda não vai falar? Falar o quê? Sei lá, tirar os meninos para vê o prisidente, enquanto deveriam estar estudando... Ninguém liga, se ele chegou onde chegou mal sabendo escrever o nome, não vai ser um dia de aula perdido que vai prejudicar. E vão ficar até três da tarde esperando? Ô rapá, “enche a boca de castanha”. Vô dizer como diz o prisidente: “Se fosse fácil resolver o problema da fome, não teríamos fome.” Entrega bandeirinha e pega um daqueles de aparência mais lascadinha pra ele passar a mão na cabeça. Tá bom, tá bom...

O discurso

        Cumpanhêros, tamo aqui inaugurando estes prédio pro povo favelado. Outro dia eu disse pro Niemeyer que Brasília tá parecendo uma favela e me deu um estalo. Seria bom um pograma pá acabar cum as favela do país. Eu já acabei com a Brasília teimosa no Ricife e agora tamo acabando cum os palafitado aqui do Maranhão, quer dizer, de São Luís. Agora os cumpanhêro palafitado num precisa ter vergonha de onde mora. Visitei até um apartamento, hoje vai ter buchada de sarnambi, a cumpanhêra até me deu uma lasquinha, mas tô de dieta, mas aceitei um talagada de tiquira.
        Num é fácil cumpanhêros, mas “O governo tenta fazer o simples, porque o difícil é difícil.” Pra isso, nóis tem que fazer aliança. E eu lá tô querendo saber se o sujeito é da linha essa e aquela? Nóis tem que garantir a guvernança. Digo mais: “Eu quero saber é se o povo tá na merda e eu quero tirar o povo da merda em que ele se encontra”. Ih, já vi que amanhã a imprensa azeda vai dizer que falei palavrão. E merda é lá palavrão? Vocês aqui, quem é que não faz merda de vez em quando? Não, todo dia? Então, merda é produto fisio...fisio (merda!) enfim, é coisa natural. Quando eu digo que quero saber é se o povo tá na merda é porque não vou dizer: “Meu, sifu.” Os político da oposição falariam isso? Falariam? Duvido.
        O povo é quem nem “na Amazônia, vivem 20 milhões de cidadãos que têm mulheres e filhos. Mulheres e filhos são apêndices dos cidadãos...” E quem é que vai cuidar deles? “Os ricos babacas”? Nunca. Então, é nóis.
        Por falar em Amazônia, já que tamo num pedaço dela – né não guvernadora? – nóis é que tem que proteger. Eu sei que aqui tem mais é babaçu e que muitas cumpanhêra passa o dia quebrando a castanha no cacete. O babaçu nóis vai proteger também. “De vez em quando eu acho que a Amazônia é como aqueles litros de água benta que têm na igreja: todo mundo acha que pode meter o dedo.” E uma cunversa leva a outra, aproveito pra dizer aos homi aqui presente que “O homem tem a maldita mania de achar que ninguém pode passar a mão nele. Ele é todo machão, mas quando pega um câncer de próstata, é virado do avesso. Gente, nada substitui o toque.”
        “Estou vendo o José Ribamar sentado, tentando me olhar, mas ele não pode me olhar porque ele é cego. Estou aqui à tua esquerda, viu, Ribamar! Agora, você está olhando pra mim...” (o nome foi alterado, o restante da frase é real). É assim que a oposição tá andando. Igual o cumpanhêro José Ribamar. Nunca antes na história desse país se fez tanto pelo povo. Tamo tirando da merda o maior número de cumpanhêros. Isso os rico num quer. Falam mal até da cumpanhêra Dilma. Dizendo que ela nem é candidata ainda. É verdade. Vai ser. Esse ex-presidente é burro. Se fosse candidata nem podia discursar nessas inauguração, né não, Dilminha?


PS: As frases entre aspas são originais.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Cachorro também é gente

Um cachorro foi levado à Justiça indiana sob acusação de causar tumulto.
Autoridades policiais do Estado de Bihar, no leste da Índia, pediram punição severa ao cão, Chhotu, por distribuir mordidas entre a população.
"A corte foi obrigada a emitir uma convocação ao cachorro uma vez que a polícia entendeu que ele é uma ameaça à paz, e que podia criar um problema à lei e à ordem", disse uma autoridade local, Rajiv Ranjan.
Fonte: Da BBC News em Patna (Amarnath Tewary)


Minha história daria um livro, ouvi isso muitas vezes. Não é de admirar. Sei o que significa a expressão vida-de-cachorro. Hoje a coisa está um tanto dúbia, porque tem cão por aí que leva vida de nababo, mas me refiro ao significado original da expressão. Julguem os leitores se não tenho razão.
Nasci numa ninhada de dez, o que já é, em si, um problema. Experimente disputar um peito nestas condições. Alguns de meus irmãos tiveram melhor sorte, outros nem tanto, eu fiquei entre os dois. Logo ao desmame, fui adotado por uma senhora. Eu era alegria da casa. Ela me enchia de mimos. Dois anos depois a coitada morreu. Aqui começa minha via crucis.
Como costumava fazer, pela manhã eu a acordava. Subia na cama, lhe dava umas quantas lambidas e ganhava uns afagos. E a vida seguia assim, tranquila. Mas um dia, ao entrar no quarto, deparei-me com a pobre mulher dependurada na ponta de uma corda. Juro, pensei que fosse uma brincadeira. Lati, pulei ao redor dela, nada. Então percebi que, fosse o que fosse, aquilo era muito ruim.
Pra resumir. Quando o cheiro estava insuportável e eu latindo morto de fome e sede, apareceu alguém que viu a situação. A casa encheu de gente. Parentes da minha dona, eu acho. Disseram que foi assassinato, seja lá o que isso signifique. Um deles me deu um chute alegando que eu era um imprestável e não evitei a morte da minha dona. Uns caras fardados apareceram e disseram que foi suicídio. Terminei na frente de um tribunal, convocado como única testemunha ocular, não antes de conversar com uns psicólogos caninos.
Estes humanos são uns loucos. Fiz minha parte. Contei tudo na acareação. Em latidos, que é a única língua que falo. É que me colocaram diante de dois sujeitos mal encarados. Queriam que eu os reconhecesse. O funcionário do tribunal ficou ali do lado, aguardava para anotar um grunido que fosse. Nunca tinha visto os dois mais gordos. Não sei a que decisão chegaram, mas meu depoimento foi uma sensação.
Jogaram-me, depois disso, numa instituição para animais sem lar. Aprendi que uma cara de cão pidão ajuda pra caramba na hora que aparecem umas pessoas para adotar os coitados que ficam ali. Imagine a cena. Um se agacha, rabo entre as pernas, orelhas para trás, levemente caídas e um olhar oblíquo, de baixo para cima. Vocês não imaginam o que se aprende de malandragem nestes lugares. Deu certo comigo. Outra senhora me adotou. Viúva. Caiu de amores e me tratava a pão de ló. Uma noite apareceram uns caras na casa. Distribuí mordidas a torto e a direito. Sabe como é, gato escaldado... Eram vizinhos. Denunciaram-me no tribunal. Fui advertido.
A coisa aconteceu outra vez, mas aqueles caras eram danados de suspeitos. Enfiei o dente neles, ora se não. Novamente, um complô, fui denunciado e agora eu era um pitbull enlouquecido, embora nunca tenha passado de um genuíno vira-latas. A polícia disse que eu era uma ameaça à paz, à lei e à ordem, imaginem. O juiz estava de mau humor e me condenou à morte - aqui ainda se faz sabão com cachorro -, assim sem mais, sem ouvir as partes. Um processo fajuto, sem dúvida. Escapei por que minha dona fez uma campanha e juntou uns amalucados que trocam gente por bicho. Sorte minha.
Não é que eu tenha pegado gosto por mordidas, mas um tem que defender sua casa, ou não? Eu não saía por aí mordendo os outros, mas entrou de bobeira em minha casa, eu não contava conversa. Assim que, outra vez, mordi gente de novo. Outro processo. Meu advogado disse que os tais vizinhos inventaram aquela calúnia contra mim porque queriam, na verdade, roubar minha dona. Vejam só que vizinhança ela tinha. Coitada, nesta história toda, vivia dizendo que me criou como a um filho, me deu educação e que eu era sua única proteção, etc. Sempre achei isso meio estranho, mas me convinha.
Depois de tanto rolo, estou pensando seriamente em entrar para a polícia, dizem que tem uma vaga de cão farejador. Estou em dúvida, talvez comece um curso de direito, o que mais se vê por aí é injustiça humana com os animais. Dá uma m#@* qualquer, descontam na gente.


PS: Desculpem a foto, sei que não é meu melhor ângulo, pareço raivoso, mas acreditem, sou boa gente, quero dizer, cão.

domingo, 29 de novembro de 2009

Simples e Prudente: entre serpentes e pombas

Ovelhas e lobos, serpentes e pombas. Quatro animais numa frase cujo contexto revela uma inflexão na relação entre Jesus e os discípulos, mas também na ação daqueles. Da passividade de audientes, para a prática viva da pregação. O cenário não é animador. Ameaças e violências pontificam o que lhes espera no caminho e diante de tais situações há que se ter determinadas características. É isto ou a sucumbência ao vazio da irrelevância. A morte prematura da mensagem.
O discurso descreve uma ecologia do espaço da pregação. Os pregadores são presas (ovelhas), os religiosos, não necessariamente os ouvintes, são os predadores (lobos). Os ouvintes também se tornam lobos em situações especiais. Desde que os lobos alfa os manipulem com alguma destreza. Não existe neutralidade, o que há é uma mudança constante de papéis, porque, por antinatural que pareça, ovelhas também se tornam lobos. Nossa natureza é cambiante como as cores sob o efeito da luz.
Que quer dizer ser prudente e simples? Embora nos pareçam palavras distintas, em seu sentido aqui são termos que se tangenciam. Aristóteles considera a prudência a principal das virtudes. Para ele esta virtude se equilibra entre a falta, que é a moleza e o excesso, que é a ambição.
Para nós hoje a prudência está reduzida à simples cautela. Mas tanto em Aristóteles como no Evangelho o significado vai além. Para o filósofo, quer dizer tomar a decisão certa. Para o Evangelho, é ser sábio e inteligente. Alguém consciente de um único interesse. É neste ponto que prudência toca a simplicidade.
Ser simples tem a ver com não ser misturado. É puro como um vinho ou um metal depurado. Uma mente sem a mistura do mal. Evoca inocência. Unicidade. Novamente temos um predador e uma presa. Mas diferente da primeira dupla de opostos, onde apenas o conflito se destaca, aqui há um complemento de características.
Ocorre-me que a pureza sozinha num mundo caído é um ideal que nele não se cria sem que seja misturada há algo que lhe dê um esqueleto de sustentação, neste caso algo que na serpente nos parece algo intrinsecamente mal. A prudência na serpente é malícia, assim vemos. É ardil e sagacidade cujo único propósito é ferir. Na ovelha é uma arma de defesa.
A teoria se parece a algo predito no Tao te Ching (O Livro do caminho Perfeito), cuja principal representação para nós ocidentais é o círculo representativo do Yin e do Yang, as forças masculina e feminina, respectivamente. Refiro-me ao fato de que uma mesma coisa carregue seus opostos, cuja interação resulta num bem superior, segundo o Tao. Não sugiro, por evidente, que mal e bem são faces da mesma moeda, como diria o Raul, envolvidas num abraço astral. O evangelho, por sua vez, declara o bem ou o mal intrínseco dos atos, pois desacredita que uma mesma fonte borbulhe água amarga e doce ao mesmo tempo.
malícia da serpente, suponho, tem a ver com seu andar sinuoso que é sempre algo sutil e delicado. Os obstáculos são contornados com perícia envolvente. Ser sinuoso para nós é ser dúbio, astucioso, alguém cheio de subterfúgios. O ser sinuoso aqui tem característica dinâmica, aquele que se desvia. O mal reside na falta de flexibilidade. Em psicologia, tomada emprestado da física, chama-se resiliência, que conjuga adaptabilidade, capacidade de deformação elástica emocional e mental.
O evangelho, por suposto, distingue-se do Tao e chama o mal pelo nome, sem possibilidade de que nele habite qualquer bem. O que nos leva ao passo seguinte. Toda virtude numa natureza pervertida se perverte também. Subjaz à pratica da virtude, neste caso, um fim destrutivo ou interesseiro. Alguém lisonjeia, seu objetivo é disfarçar seu ódio (inveja) ou ainda tornar o outro favorável à sua demanda. A lisonja é o alimento da vaidade, mal que a todos nos toca.
Por fim, simplicidade e prudência, são filhas da sabedoria que reconhece o tempo e o modo das coisas. Desvenda as pessoas e situações de modo que, diante das muitas armadilhas que o viver nos apresenta, torna-o uma arte cuja principal arma é a verdade, alguém sem sombra ou variação de mudança. Isso soa a ser um pouco Deus.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Camelô mudo


Ele tinha um ar blasé. Sentado em seu tamborete alto, olhava os passantes. Esperava. De vez em quando, cutucava a unha do mindinho. A porta de rolo levantada a meia altura dava lugar na entrada a duas minúsculas bancas de camelô. O prédio tinha um ar decadente pelos azulejos verdes gastos, quebrados e as molduras das portas rachadas e descoloridas. O lugar fora uma farmácia durante muito tempo, agora estava vazio, exceto pelo homem. Perdeu espaço e clientes para as megastores farmacêuticas que vendem tudo, inclusive remédio.
Ele, um homem amulatado, resultado destas misturas brasileiras, andava aí pelos seus sessenta e poucos anos. Sobre as bancas de seu negócio havia de tudo um pouco destas quinquilharias chinesas: uns lampiõezinhos coloridos à pilha, relógios de mostradores fosforescentes, prendedores de cabelos, canetas. De minha posição, eu não havia notado, vendia óculos de grau também.
Como o olhara demoradamente pelo tédio da espera no carro, percebi que havia sobre uma das bancas um destes novos testamentos dados pelos gideões. Ocorreu-me naquele instante, não que fosse religioso, mas que matasse o tempo com uma leitura ligeira do evangelho.
Chega um freguês. De onde estava, não podia ouvir o que diziam, daí que recrio pelas ações o que foi falado. Tem óculos? O velho camelô balança a cabeça afirmativamente. Torce para o outro lado um palito que carregava num dos cantos da boca. Remexe numa caixa embaixo da banca. Num pequeno saco, retira uns óculos de lentes brancas e aros finos. O homem pega meio desajeitado, pois carregava uma sacola pequena de compras numa das mãos. Põe no rosto, ajusta, e olha para um lado e outro. Em silêncio, o vendedor que se movia com calma zen, pega o novo testamento e dá ao homem para que experimente com a leitura se os óculos servem.
O homem abre o pequeno livro ao meio e o aproxima dos olhos. Devagar, estende o braço para testar sua acuidade à distância. Faz o movimento uma,  duas vezes e balança a cabeça negativamente. O vendedor dá-lhe outro par, depois de verificar na lente a medida do grau. Novamente o mesmo processo. O freguês aproxima e estica o braço, mas como o outro, não lhe serve. Balança a cabeça num não. A esta altura, percebi um ligeiro enfado no vendedor como que a dizer: este cara não se decide.
Um terceiro óculos é  retirado, agora de outro saco. Os aros brilharam ao sol. O freguês experimenta, havia esquecido o novo testamento sobre a banca, ao que o vendedor rapidamente lhe devolve. Depois de “ler”, pergunta: Quanto é? O vendedor: dez real. O homem põe a mão no bolso de detrás da bermuda e com dificuldade retira dali uns trocados embolados, separa um dez amarfanhado e o dá ao vendedor que, sem olhar para o dinheiro, apenas coloca-o o no bolso. Sem mais palavras, o freguês se retira e vai tomar uma água de côco com o que restou de suas compras naquela manhã. Como as vendas iam de vento em popa, o vendedor animou-se e se presenteou com uma água de côco também. Assim o mundo gira.

Quem se comunica se trumbica


Ganha um Ignóbil quem encontrar alguém que, tendo um celular, nunca tenha sofrido o diabo nas mãos das operadoras. Não à toa elas são campeãs em reclamação dos órgãos de defesa do consumidor. Acho que eles se orgulham disso. Deve ser alguma espécie de campeonato às avessas.
Claro que o país melhorou neste quesito. Saímos do monopólio estatal ineficiente, burro e caro. Hoje temos a opção de escolher entre várias ruins. A diversidade é grande: Ai, Morto, Tum, Escuro, que mais podemos querer?
Pois foi dos arquivos de uma dessas agências de proteção às vítimas (consumidores) que retirei estas histórias rocambolescas que de tão esquisitas parecerão irreais ao leitor, mas afirmo, são verdadeiras.
Ah, tive que escolher um tema, imaginem, tantas são as variedades de coisas sem-pé-nem-cabeça com que um se depara. Digite 1 para telefone que não fala ou dá choque. Digite 2 para cobranças irregulares ou fones explosivos. Digite 3 para serviço porco ou namoro com a secretária eletrônica. Era algo assim. Uma lista a perder de ouvido. Escolhi comunicação por torpedo.
Biluzão e Biluzinho, dois ladrões pé de chinelo, mas que tinham ares de mafiosos da Cosa Nostra – sem a inteligência e a maldade daqueles –, viviam fazendo planos mirabolantes. A ideia era um roubo definitivo e a aposentadoria. Entre um furto, um conto do vigário, viram no jornal que a moda era roubar caixa eletrônico. Biluzão, o cérebro, montou um plano infalível. Contrataram dois a toas iguais a eles e foram ao ato.
Para dar um ar de sofisticação tudo seria combinado via torpedo. Não sabiam eles que aí estava seu calcanhar de Aquiles. Nestas coisas a precisão é tudo, como se sabe. Havia um tempo mínimo entre a passagem da ronda policial e a virada da câmera móvel. De seu posto de observação, Biluzão mandaria o sinal para a ação. A senha era “vai”. Tudo pronto. Patrulha passou, a câmera olhou para o outro lado. Biluzinho e os comparsas esperavam. Biluzão manda a mensagem. Na tela do celular: “Sua mensagem não pôde ser enviada.” Droga, eu botei crédito! Um não pode nem confiar na operadora Ai para fazer seu trabalho.
Enquanto isso, Biluzinho aguarda. Dez minutos depois, no celular de Biluzão: “Sua mensagem foi enviada com sucesso”. Era uma ironia. Biluzinho sai em desabalada e mal começa a arrancar o caixa, a patrulha volta e os pega.
O casal brigou. O motivo foi uma destas coisas mesquinhas que se cultiva de vez em quando. Desta vez, porém, havia um ar de definitivo. A mulher se recusava a ir embora para outro lugar onde se casariam e viveriam. Se eu entrar naquele avião nunca mais terá volta, disse o namorado e saiu. Pode ir, disse a mulher dando de ombros. Os minutos foram passando e uma angústia terrível se instalou nela. Arrependimento. Burra, dizia, um cara como Beflágio vai ser difícil encontrar. Mas não queria dar o braço a torcer. Orgulho, certamente. Mando um torpedo, se ele não responder, pelo menos não passo vergonha, pensou. Bé – assim ela o chamava quando queria acarinhá-lo – não vai, eu quero você.
Segundos depois a mensagem maldita da Escuro: “Sua mensagem não pôde ser enviada”. O voo era às 14h. Às 14:23 outra mensagem na tela. “Sua mensagem foi enviada com sucesso”. Bé nem recebeu porque já estava a nove mil pés de altura, por coincidência, sentado ao lado de uma bela morena que, pela conversa, prometia.
A chave só deve ser ligada quando eu mandar, disse o chefe da obra. Vamos combinar. Eu mando um torpedo com a palavra “liga”. Assim de simples. Perfeito chefe. Olha lá, hein! Faltou combinar com o serviço de telefonia móvel da Tum.
O cabo que alimentava o parque de diversões apresentou um defeito justo na hora em que centenas de pessoas usavam os brinquedos. Uma parte dos operários retirariam as pessoas que estivessem mais à mão. Os outros tentariam o conserto do cabo. E o trabalho do Zé era esperar a ordem e ligar a chave geral.
Os enganchados na roda gigante, montanha russa e qualquer outra coisa que deixasse as pessoas nas alturas ficariam para quando a energia fosse restabelecida.
O cabo foi consertado. O chefe manda a mensagem para o Zé: “liga”. Ato contínuo a tela se ilumina com uma contramensagem: “Não foi possível enviar sua mensagem”. O chefe se exaspera. Todos esperavam que o Zé ligasse a chave. O chefe até berrou, mas Zé, com fone de ouvidos, ouvia à toda uma destas músicas bate estaca.
Cansados de esperar a equipe de resgate volta a retirar as pessoas que estavam mais aflitas. Então, o celular do chefe recebe a boa notícia: “Sua mensagem foi enviada com sucesso”. Zé liga a chave, os brinquedos rodam. Enquanto despencam pedaços de gente trucidados pelas engrenagens, Zé, satisfeito com seu trabalho, balança o esqueleto.

domingo, 15 de novembro de 2009

Paixão virtual é uma roubada

Uma mulher no norte da França foi presa por ter "sequestrado" em sua casa um homem que ela conheceu em um site na internet e que se recusou a ter relações sexuais com ela, após tê-la encontrado pessoalmente.
Eles se conheceram no site Yes! Messenger, com forte conotação sexual, que promete "encontros rápidos, tórridos e sem complexos", informa nesta terça-feira o jornal Le Parisien.
Fonte: De Paris para a BBC Brasil
Agenor é um solteirão convicto. Nem sempre foi assim. Ele não diz, mas quem o conhece conta que esta decisão quase religiosa, é fruto de uma decepção amorosa na juventude. Não que ele seja um eunuco, ao contrário. Sem namorada fixa, Agenor faz o que tem que fazer. Bem, vocês podem imaginar, as opções são quase infinitas. E ele trata do assunto apenas como necessidade fisiológica. Se alguém diz que é meio animalesco, ele dá de ombros.
A descoberta da internete mudou a vida de Agenor. Se as opções eram muitas para aquilo, vocês sabem o quê, agora se elevou aos píncaros. Feio, assim, desproporcionado, ele não é, embora precise vestir-se melhor e fazer a barba com mais frequência, além de não esquecer o desodorante. Lapsos, sem dúvida.
Gasta as noites fuçando por muitos saites e, se bate a necessidade, descamba para chats impróprios para menores. Entre uma conversa picante e outra, sempre descola um sexo virtual. Taí uma coisa incrível neste mundo de bits, um pode ser o que quiser, de Brad Pitt pra frente, tudo é possível. Quem se importa?
Apesar de sua decisão irretratável e irrenunciável, como diria o Mercadante, ninguém está imune às armadilhas do amor. Agenor conheceu uma tal Arlinda. O nome já dizia muito, mas ela era muuuuuito mais que isso, pelo menos, perguntada indiscretamente sobre suas medidas – Agenor é um tanto direto –, era coisa de botar qualquer mulata globeleza no chão. Por sua vez, embora não tenha mentido, digamos que suavizou em muito suas qualificações estéticas.
Agenor era só love. Semanas naquilo, até que ela o convidou a ir a seu apartamento. No dia acertado, lá estava Agenor na melhor roupa, um buquê mirrado de flores na mão. Era todo nervosismo. A porta se abre. Você é o Agenor? Sim, Arlinda está? Claro, está lhe esperando. Um momento. Sai a mulher e volta... a mesma, já preparada para matar, fantasiada de mulher maravilha e que logo tratou de desmontar-se.
Agenor teve um sobressalto. Mas, mas... Eu sou a Arlinda. Você é lindo. Agenor estava lívido. Aquilo não era exatamente uma mulher, era qualquer coisa entre um barril flácido e um bode. Sem mais delongas, Arlinda partiu para os finalmente. Agenor tentou se explicar que havia um engano, mas comido de beijos úmidos e doces de muito vinho, estava difícil falar. Sem contar os aprochegos que ela fazia com tal gana que lhe doía a velha escoliose.
Tentou se safar, mas a mulher se atracou que lhe sufocava. Vem cá, Agenor, não seja tímido. Num golpe de sorte, conseguiu safar-se por momento. Tentou sair, mas Arlinda, cambaleante, postou-se como barreira humana à porta. Deu-lhe um ultimato: ele só sairia depois de lhe dar sexo. Foi o tempo para ele ligar para a polícia. Por sorte, uma viatura passava no lugar. Ao ouvir a sirene, Agenor começou a gritar que havia sido sequestrado. A mulher, enfezada e quase possessa, lhe atirava coisas.  Você me iludiu, Agenor. A polícia bateu na porta. Os vizinhos amontoavam-se no corredor. A mulher berrava: daqui ele só sai depois de cumprir sua função de homem.
Sem mais o que fazer, nenhum argumento demoveu Arlinda de sua sanha, arrombaram a porta. A cena era dantesca. Agenor mais amarfanhado que de costume, Arlinda nua implorando por aquilo. Ao ver os policias disse: Agenor, seu safado, por que não disse que teríamos mais gente em nossa festinha?

domingo, 8 de novembro de 2009

Quero ser o Zé do Caixão

O pedreiro Ademir Jorge Gonçalves, 59 anos, foi dado como morto após um acidente na BR-153, em Santo Antônio da Platina (PR), na noite deste domingo (1º). Familiares e amigos reconheceram o corpo no necrotério e o sepultamento foi providenciado como de praxe. O detalhe é que Ademir, conhecido como Tufão, apareceu vivo no próprio velório, às 8h desta segunda-feira (2), feriado de Dia de Finados.

Fonte: O Globo
A história saiu assim, sem mais. Ele me olhou, puxou conversa. O bafo de cachaça quase me fez levantar do lugar, mas não estava bêbado. Certamente era ressaca. E foi assim que começou.
Tem coisa que contando ninguém acredita, mas foi comigo, sim, senhor. Morri e nem sabia. Aqui mesmo neste bar vieram me dizer que minha família estava no meu velório. Eu tinha saído de casa uns dois dias antes. Briga de marido e mulher. Eu queria dar uma lição na Cotinha. Aquela mulher quando tira pra atazanar um...
Pois olhe, como eu dizia, estava aqui mesmo. Chega Borracha e me diz: Tufão, corre lá na tua casa que vão te enterrar. Olhe, aquilo me deu uma tristura que só vendo. Perguntei. Como é que eu vou ser enterrado Borracha, se tô aqui bebendo minha pinguinha? Não sei. Só sei que tu morreu e teu povo vai te enterrar. Corre que se não te enterram antes de tu chegar lá.
Ô moço, aquilo num era notícia que se dê. Corri lá pra casa, fui tirar a história a limpo. De longe se ouvia o berreiro. Cá comigo, agora penso que era só agá. Ô povo sem coração, esse meu! Cheguei lá desacorçoado. E o senhor acredita que entrei e ninguém me reconheceu? Estavam mais satisfeitos comigo, lá, morto. Só minha sobrinha me reconheceu: é o tio Tufão! E o povo olhando pra dentro do caixão. E eu: sou eu gente, tô morto não. Minha mãe, coitada, teve um passamento. A diaba da Cotinha, o senhor acredita, nem uma lágrima.
O fuzuê foi grande. Teve gente que correu com medo. Eu tava parecendo uma visagem, mesmo. Perguntei. Como foi que eu morri, gente? Disseram que fui atropelado. E o senhor acredita que eles me reconheceram no necrotério? Atestaram e assinaram, sim, senhor. Foi assim que me disse seu Honorato da funerária. Como é que ele ia saber que o morto num era eu se minha própria família disse que era? Meus irmãos, meus sobrinhos, me desconheceram. Teve parente que teimou comigo que eu não era eu. A Cotinha eu até entendo. Mas minha família?
O pior o senhor não sabe. Sei lá porquê, pra num guardar lembrança do morto que era eu, tocaram fogo no meu colchão e nas minhas roupas. Disseram que agoura guardar as coisas do morto. Tô só com a roupa do corpo.
De qualquer maneira, esclarecido o caso, fomos pra casa. Seu Honorato da funerária quis saber quem ia pagar o enterro. Queria que eu pagasse. Como? Pergunto ao senhor. Disse ele que serviu chá, café, bolacha durante 24 horas. Sem contar o caixão. Velaram isso tudo? Duvido. Ora, mas eu não morri e nem inventei que tinha morrido. Disse a ele que se entendesse com o morto de verdade ou então que cobrasse de quem disse que eu morri, num tô certo? Aliás, ninguém sabia quem era o desinfeliz do morto.
A polícia quis saber o motivo da confusão do reconhecimento. Mas o delegado logo entendeu que minha família era um bando sem eira nem beira. Descobriram que o morto tinha nome e família e era da cidade vizinha aqui perto. E o senhor pensa que pagaram seu Honorato? Nada. O coitado engoliu o prejuízo. Pra mais de mil reais, dizia toda hora. Mas pelo menos entendeu que eu não tinha que pagar. Se estou vivinho da silva, o serviço não me serviu.
Mas o senhor sabe o que dói mais neste caso? Não se faz mais velório como antigamente. É tudo ligeiro. No meu tinha choro, mas pouco. Eu fui um defunto de pouco choro, essa é que a verdade, por aí o senhor tira. Fora isso, num tenho mais sossego, toda hora tem um querendo saber a história e não gosto nada deste apelido de morto-vivo. Já que tô famoso, preferia Zé do Caixão, é mais importante, né não?

sábado, 7 de novembro de 2009

Estudante expulsa da universidade



Nem bem postei o texto abaixo e deparei-me com a notícia de que a garota da minissaia foi expulsa pela universidade que frequentava. A diretoria alega que a moça sempre se vestia de forma não apropriada, apresentava comportamento incompatível com o ambiente universitário - a ser explicado o que seja "comportamento incompatível" - e gostava de provocar os rapazes com andares e cruzadas de pernas pra lá de provocantes. Além disso, alega a universidade, no dia do tumulto, a moça, supostamente, levantou a já diminuta minissaia de modo que se podia ver suas partes íntimas, sem contar que entrou em sala de aula que não era sua, pois, segundo consta, queria conhecer um rapaz que estava interessado nela.
Postas as razões da universidade, fica ainda o espanto diante da reação dos alunos que, por pouco, não atacaram fisicamente a moça. Permanece mal explicado como é que alguém, conforme foram expostas as razões da universidade, tem comportamento não recomendado durante todo um tempo sem que nenhuma medida tenha sido tomada. Ora, se a moça perturbava a tal ponto os rapazes, talvez impedindo até que aprendessem, ou ainda atrapalhava as aulas com suas performances sensuais, é responsabilidade da instituição de ensino conter este tipo de abuso. 
A emenda agora parece pior que o soneto. É mais fácil chutar a mulher para a rua do que repensar o evento que revela e muito do ambiente da universidade e mais ainda das pessoas que ali estudam.


Acima, foto da moça envergando o malfadado vestido.

Entre a minissaia e a Marcha para Jesus

O país inteiro assistiu surpreso ao que aconteceu na Uniban, uma universidade particular em S. Paulo. Uma aluna, Geyse, 20, foi assistir aula com uma microssaia, se assim preferirem. Não se sabe como, a peça de roupa detonou – a palavra aqui tem que evocar algo explosivo – uma onda de fanatismo, intolerância, hostilidade que envolveu, segundo contam, professores, cerca de 700 alunos e até os seguranças da instituição de ensino.
O episódio é revelador do comportamento idiossincrático das pessoas nesta sociedade que se gaba de ser liberal, sem preconceito e outros epítetos com que as pessoas gostam de se intitular. Só para constar. A faculdade referida não faz parte de um complexo religioso fundamentalista. É laica, dizem.
A sociologia e a psicologia explicam. Como uma manada estourada, não há mais razão porque correm, nem para onde, apenas correm. Há um efeito tipo “siga o líder”. Um véu se instala no centro de processamento do raciocínio e de escolhas, os lobos frontais. Uma afirmação dita ganha peso de verdade incontestável, faz todo sentido naquela circunstância, daí para a ação pertinente, violenta ou não, é um pulo.
A notícia circulou rapidamente e logo todos acreditavam que a minissaia era, sim, uma das maiores afrontas morais, sexuais, um atentado à dignidade humana, feita às pessoas naquele lugar. Os nossos preconceitos, por mais descolados que sejamos, estão todos debaixo do rabo. Aqui numa alusão à nossa condição primitiva. A todo o momento pedem para sair, mas as convenções sociais, morais, educacionais, nos impedem, se temos tempo suficiente para pensar. Do contrário, um centro de ensino superior, lugar do cultivo de coisas elevadas, se torna num piscar de olhos, em algo próximo de um campo de reeducação chinesa, um gulag ou, no limite, num campo de concentração.
Pensar o contrário da turba exige uma quantidade de energia incomensurável. Pede esforço hercúleo. Subjaz a este tipo de oposição, crescimento pessoal, firmeza de caráter e opinião, espiritualidade sensível, empatia pelo outro, coisa de cultivo pessoal ao longo de anos e nem isso garante nada. A história está cheia de casos assim, cujo exemplo mais eloquente e verdadeiro laboratório é a Alemanha no período do 3º Reich. Toda a sociedade foi colocada em cheque. A igreja cantava Glória a Deus sob o manto do estandarte nazista. A maioria absoluta delegou a outros sua capacidade de pensar, julgar, comparar e escolher. Daí porque se ouviu muitas vezes nos tribunais: Eu só fiz o que me mandaram.
Ninguém escreveu melhor sobre isso do que Hannah Arendt. Ela cunhou a frase lapidar: a banalidade do mal. Noutras palavras: o demônio, devidamente maquiado, não é tão feio. Ainda mais se se ganha algo em troca. O filme “Um homem bom” tenta explorar esta vertente que “O Leitor” logra demonstrar de uma forma quase chocante, pois nos coloca o dilema de que a pessoa acusada não sabia ler e era uma simplória.
A despeito da recente Marcha para Jesus, patrocinada pela Igreja Renascer, cujo casal de líderes saiu recentemente de prisões americanas, por tentar entrar no país com dinheiro não declarado, inclusive dentro da Bíblia. O tema da Marcha era a derrubada de gigantes, que seus patrocinadores habilmente manipularam para comparar ao preconceito e perseguição que eles, supostamente, alegam sofrer. Trago este tema à baila porque um estudante da Uniban comparou a turba enlouquecida a, em suas próprias palavras: "Parecia uma igreja evangélica cheia de fanáticos. A hipocrisia era igual." Os promotores da Marcha queriam também combater o que eles julgam ser uma visão distorcida dos evangélicos no país. Parece que precisarão de muito mais que Marchas ufanistas.
Jesus também enfrentou fanáticos de sua própria Uniban judaísta. A turba, composta de jovens e velhos, exigia que ele julgasse uma mulher pega em flagrante adultério. Atirada ao chão, jazia a mulher. Eles, pedras nas mãos. Estavam certos que a lei seria obedecida de forma irrestrita. Quem poderia resistir à Lei sagrada que mandava apedrejar este tipo de escória? Era uma armadilha para Jesus, mas também os carrascos precisavam aquietar suas consciências com a aprovação do Rabi. A Lei era a verdade, mas se vivia tempos estranhos, verdades concorrentes, misticismo, política e religião abraçadas como se fossem irmãs siamesas; dinheiro e venalidade religiosa praticada à luz do dia sob mantos sagrados; ignorância e fanatismo cultivados como escorpiões nos corações das massas sempre prestes a fazer qualquer coisa, bastando que alguém dissesse “isca”.
Os preconceitos e, acrescento, pecados, estão debaixo do rabo, lembram? Precisam que se lhes chamem pelo nome, se lhes exponham para serem exorcizados à luz da verdade. Senhores, quem não tem pecado dentre vós que atire a primeira pedra. Mãos tremeram, lábios crisparam, as pedras foram apertadas com força. Era o impacto do confronto com as palavras de Jesus. O mundo deu uma volta com eles, como um carrossel. Os músculos retesados afrouxaram, as pedras caíram rente ao corpo das mãos inertes. Os pés hesitaram por momento para sair, por vergonha, muitos estavam absortos em seus pecados que lhes vinha à mente como ondas.
Mas eles sempre voltam com suas pecadoras. Acusam, escondem suas misérias sempre lustradas, debaixo de roupas vistosas e cabelos impecavelmente ensebados. Autenticam sua fúria, anônimos na turba. Adoram as luzes dos holofotes, são, diria Judas, recifes submersos à espreita de navios desavisados. Agora já não acusam tanto, porque alargaram a porta e pecador é só aquele que não lhe presta culto, de preferência em forma de dinheiro.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Formolizado, mas vivo




Depois de quase um mês do desaparecimento e de inúmeras buscas pelas ruas do bairro e no canil municipal, além de anúncios em rádios e jornais, uma estudante de biologia de Franca encontrou, por acaso, seu cachorro morto num laboratório de anatomia da universidade em que estuda.
Folha – Ribeirão Preto 28/10/09

“Procura-se por cão de cor branca com manchas pretas. Sem raça definida. Pelagem curta, cotó, olhar esperto e afável. Chama-se Perré. Quem encontrá-lo, favor ligar para o número abaixo. Excelente recompensa.”
Perré sumira três dias antes e ao longo de todo o mês, o anúncio foi divulgado no jornal local. Fotos de Perré foram espalhadas por quase toda a cidade. Nos postes, claro, vai que um amigo dele na hora de fazer uma necessidade visse... Até um anúncio na TV foi veiculado. Nem um telefonema. Nem trote. Marcinélia estava entre abatida e, às vezes, eufórica. A falta de notícia dava-lhe a esperança de que, sendo Perré um cão tão especial, de temperamento agradável, ativo, inteligente, alguém poderia ter caído de simpatia por ele e, por suposto, guardava-o em casa, daí porque não tinha notícia.
Por via das dúvidas, Marcinélia checou se havia alguma colônia de coreanos ou chineses, já que cães costumam visitar a mesa destes povos. Como prato principal, bem entendido. Mais aqueles que estes, embora, na tentativa de alimentar seu 1.2 bilhão de habitantes, este mimo de muitas casas visite as mesas chinesas mais vezes do que seria esperado, considerando-se apenas a cultura. O negócio deles é rato, ovo podre, escorpiões, grilos, cobras. Mas estamos no Brasil, e aqui estas comunidades não costumam beliscar os caninos. De todo modo, não havia comunidades asiáticas nas redondezas.
Marcinélia estava inconsolável – quem já perdeu um cãozinho sabe disso. Não era só um bicho de estimação. Pet para os mais globalizados. Perré era da família. Seu aniversário era concorrido. Ai dela se esquecesse um parente, era intriga na certa.
O pior de tudo é que Perré se foi sem deixar nem um bilhete, um descendente sequer. Havia planos com a cadela de uma tia solteirona, mas antes que o amor canino se consumasse, Perré sumiu. Será que era medo do compromisso? Se a futura fêmea puxasse à dona... Ademais, criar uma ninhada não está fácil. Leite caro – os filhotes de hoje já nascem com defeito de fábrica, é raro o que não tem uma alergia a alguma coisa. Depois viria escola, inglês, esporte e o diabo a quatro. Sem contar que nestas relações voláteis de hoje, um divórcio deixa o sujeito segurando as calças, se não ficar só de cueca. Experimente, mesmo por motivo justo, esquecer a pensão. É carrocinha na certa. É de se dar um desconto a Perré, ou não?
Amante de animais, Marcinélia, fazia veterinária. Um mês depois, ainda sob o impacto da perda, foi a uma aula de anatomia. Dentro de um vidro de formol, pronto para dissecação, estava Perré. Marcinélia, coitada, desmaiou. Recuperada, explicaram. Foi suicídio. Perré se atirara na frente de um carro, contou o chefe do setor. Foi levado ao hospital ainda com vida, mas não resistiu. Seus últimos ganidos deram entender à equipe que ele queria doar seu corpo para salvar a vida de outros cães. Marcinélia chorou mais uma vez, agradecida por ter conhecido um cachorro tão nobre. Dentro do vidrão, Perré seria (quase) eterno. Ela não o perdera afinal.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Censura ao Corpus Christi

Olha que coisa! Recebi um email de um amigo preocupado com um filme chamado Corpus Christi que supostamente estaria prestes a ser lançado no Brasil. Uma corrente de nomes abaixo do texto explicativo, incluindo este amigo, chegava a 634 nomes, eles precisavam de 750 que seriam remetidos a um obscuro homasg@softhome.net. Esta corajosa manifestação contra o que julgavam uma blasfêmia, afinal no suposto filme Jesus era retratado como gay e haveria cenas em que fazia sexo com os discípulos, engrossariam um movimento contra a exibição do malévolo filme nesta Terra de Santa Cruz e até em outros países, dizia o texto.
Não embarquei na lista, nem me alistei na cruzada para libertar a terra santa e proteger os melindres de fés sensíveis. Para minha surpresa, utilizando o oráculo Google, logo na primeira página deparei-me com vários sites e blogs em que se dizia que o filme NÃO EXISTE.  No jargão internetês, é um hoax (boato) e centenas de pessoas caíram neste conto do vigário aqui e alhures, apenas porque não se deram ao trabalho de checar.
O que existe? Em 1998 foi encenada uma peça com o mesmo título, na Brodway, Nova Iorque, EUA. Que sim, apresenta Jesus como líder de um grupo gay. Desde então a lenda ganhou vida. O autor, Terrence Mcnally, de quem nunca se ouviu falar além desta ousadia tola, continua no limbo artístico e até onde apurei, não há a menor chance do filme ser produzido. Talvez porque a “obra” seja muito, muito ruim e o tema, para além de causar pruridos em alguns, não convenceria muita gente a ir ao cinema. Acho que nem os gays o utilizariam como bandeira de suas causas.
Expliquei ao amigo minhas razões para não me alistar neste tipo de tática de guerra santa. Aqui ampliados.

  1. Tenho horror a qualquer tipo de censura. No meu entender isso vale para qualquer assunto, preservando-se, é claro, os espaços dos outros, as indicações de idade e todos os dispositivos que numa sociedade democrática se utiliza para preservar o convívio em comunidade.
  2. As produções artísticas, sejam elas quais forem, que se utilizam de temas explosivos como a fé, a sexualidade, o sagrado, revelam, na maioria das vezes, falta de criatividade do(s) autor(es). É o caminho mais rápido para a notoriedade que eles nem em 500 anos de vida terão. Desde que o mundo é mundo que aparecem estes tipos. Bateu escassez nas ideias, basta sapecar uma aberração pra cima de Deus ou Jesus, Maomé. Taí o Saramago, do alto de seu Nobel, que não me deixa mentir.
  3. 3.   A atitude, que até considero sincera, de quem assina listas e tenta este tipo de censura, é infantil e ditatorial, o que é quase um pleonasmo. Apenas reforça e dá vida ao que não tem, a saber, a obra considerada blasfema. Aliás, é justamente esta reação que os criadores esperam. Sem os ofendidos, não há divulgação. Veja-se o ridículo Je vous Salue Marie nos longínquos anos 80 de ninguém menos que o afamado Jean Luc Godard.
  4. 4.   A tentativa de proibir fere a liberdade de opinião, criação, manifestação, pedra de toque da sociedade ocidental democrática. A se levar a cabo este tipo de coisa, quem o faz iguala-se aos mais mesquinhos regimes ditatoriais que ainda existem no planeta. Cristianismo, em meu entender, rima apenas e tão somente com liberdade, embora algumas de suas representações, desgraçadamente, tenham patrocinado alguns dos mais hediondos regimes e/ou tenham tomado atitudes erradas com as liberdades civis. Aliás, toda intenção de impor uma verdade torna-a doentia e produz todo tipo de aberração.
  5. É de se perguntar. Em que mesmo esta obra, caso existisse e fosse exibida no Brasil, afetaria a fé dos que creem? A igreja, aqui em seu sentido mais pleno, sofreria o quê mesmo em sua integridade? A resposta é nada. Tampouco o filme levaria mais gente para o inferno. No máximo, ocuparia a grade de horários nos jornais – ou páginas inteiras, caso sofresse bloqueios histriônicos.
  6. Outra razão. Não vivemos num regime teocrático, como no Irã. Somos uma sociedade laica – Graças a Deus – e a despeito de nossas certezas, outros carregam as suas e tem tanto direito quanto nós de afirmá-las. Nós não os combatemos, nós somos e é neste tornar-se/ser que espalhamos a verdade em que cremos que, evidentemente, não se ilumina na repressão ao que quer que seja, mas na manifestação da Graça e da Misericórdia. 

domingo, 25 de outubro de 2009

Diga “33” e a carteira se foi

O médico Newton Nery de Souza, 65 anos, foi preso em flagrante na noite de quinta-feira, acusado de roubar R$ 177 de seu paciente, o ajudante-geral Cristian Caetano da Silva, 33 anos, em uma sala do Hospital de Caridade São Vicente de Paulo, em Jundiaí, no interior de São Paulo.
Fonte: Portal Terra
Os antigos diziam: pau que nasce torto, morre torto. Ou aquela outra: quem nasce pra cangalha, se montar em sela cai. Não sei, mas a realidade teima em confirmar estas afirmações, à parte das explicações psicológicas. Já viram bicho mais cheio de explicação do que psicólogo?! Vote!
Melonório teve vida comum. Família remediada. Mãe: do lar. Pai: Funcionário público. Teve apenas outro irmão, de modo que apesar da vida comedida, nunca faltou nada em casa. Melonório sempre foi meio enviesado, como disse o poeta, gauche na vida, sem a conotação de que aquela entortadura fosse, nele, uma metáfora da incompletude humana.
Lá no jardim de infância, Melonório já aprontava, mesmo sujeito a dúzias de bolo – de palmatória, tão pensando o quê? – se fosse pego. Era uma rede de arrasto. Dessem moleza, deixassem à mão de gato, se Melinho, como era chamado em casa quando pequeno, visse, adeus.
Os pais, coitados, dedicados aos filhos e honrados, sofriam e castigavam o diabo do Melo com rigor, mas por uma compulsão miserável, o desinfeliz vira e mexe era pego no mal feito. Na adolescência diminuiu a prática do furto, ou ficou mais ardiloso e disfarçado, sabe-se lá. Apesar de tudo, Melonório, tinha seu mérito, não era burro. Pescava ou colava por tara, não por necessidade. Dona Piedade da Luz, professora pela qual passaram todas as crianças da região, dizia que Melinho era inteligente que só vendo, a pesca era um vício. Por exemplo, se pegava o danado no ato, além das reguadas, tomava a pesca, o livro, o caderno e o que mais ele inventasse. Perguntava tudo e não é que o peste desandava a falar sem titubear uma vez!
A vida segue. Ora Melinho na cela, ora no chão, ora na cangalha, que fazer? O fato é que passou em medicina e se formou. Furtou zilhões de estetoscópios de colegas e outros badulaques que os médicos usam em seus afazeres. Se era pego, dava desculpas elaboradas, afinal, para ser bom furtador é preciso ser exímio mentiroso. Um dia, em busca de ajuda psicológica, confessou: Eu gosto é da adrenalina do ato. Aquela sensação de: será que vou ser pego?
Melinho casou, descasou. Um único filho desapareceu, possivelmente por vergonha e ele, que poderia ter ido longe, resumiu sua vida profissional aos atendimentos no SUS e plantões. Velho, não pôde parar de trabalhar como queria, cansado que estava. Depois de 40 anos de medicina, recebia uma miséria em aposentadoria, os trocados do SUS e dos pacientes complementavam a renda e lhe dava algum conforto.
Nome: Melonório Maganão. Idade: 65. Profissão: Médico. Local de Trabalho: Posto de Saúde do Cabra Cega. O senhor sabe por que está aqui? Não senhor. O senhor foi denunciado por furto da carteira de um paciente. Eu? Doutor, vamos logo esclarecer esta história. O senhor é conhecido. Tomei liberdade de checar sua ficha e estou de queixo caído. Quer que eu diga? Não há necessidade, até porque é tudo potoca. Senhor delegado, veja bem. Iiiih. Quando começa com “veja bem”...
Olhe, eu não furtei o rapaz. Atendi-o, obra de caridade, pela hora que chegou eu já havia terminado meu horário, mas sou escravo do dever. Vai assumir, vai assumir... Melonório como que desfaleceu. Voltou a si. Sou o Melonório Hide. Sou o chefe da gang do jaleco. A carteira caiu no chão, eu peguei, achado não é roubado e de mais a mais, o SUS paga mal, fico acordado a noite inteira, tenho que ganhar algum. Esta pobraiada é só doença e só chega em horário inconveniente. Eu sou fã do dr. Hosmany, cirurgião de bolso e cofre.  Ao delegado incrédulo, restou dar ordem de prisão ao doutor Melonório Hide, que logo saiu, depois de singela fiança de 10 mil, que ele disse em tom de deboche: é troco.