quarta-feira, 11 de maio de 2016

Quero uma certeza pra chamar de minha

“Ser ou não ser, eis a questão” (To be or not to be, that’s the question).  Até mesmo quem nunca ouviu falar de William Shakespeare, deve ter ouvido esta frase alguma vez. Ela inicia o monólogo do príncipe Hamlet no Ato 3, cena 1. Na sequência daquela frase – na tradução de Millôr Fernandes – Hamlet expressa sua dúvida: “Será mais nobre sofrer na alma / Pedradas e flechadas do destino feroz / Ou pegar em armas contra o mar de angústias / E, combatendo-o, dar-lhe fim?”
Dormir e morrer são possibilidades de fuga que o personagem avalia como forma de enfrentamento daquelas mazelas. Mas a dúvida o corrói entre aguentar os males que nos cabem nesta vida e o medo do que se encontrará do outro lado da morte. Isso fala tão de perto a tantos de nós que, como ele, acossados, quedamo-nos paralisados entre “suportar os males que já temos, a fugirmos para outro que desconhecemos”.
Esse drama de profundidade abismal atinge a todos e se manifesta de uma forma quase banal nas entrelinhas de nossas corriqueiras vidinhas. Todos ansiamos ardentemente por certezas. Queremos garantias. Cercamo-nos de toda sorte de coisas e atos a fim de dar a nós mesmos o descanso de que tudo ocorrerá como esperamos. Lidamos mal com a probabilidade e ainda pior com seu filho dileto, o imponderável.
Em minha atividade, muitas vezes observo o comportamento das pessoas – algumas nada demonstram, o que não quer dizer que nada sintam – no momento em que se repassa informações sobre uma cirurgia, por exemplo. Elas devem assinar um documento em que autorizam o procedimento. Ali se lê que os riscos com anestesia, intercorrências, etc estão ao redor, quase sempre, de 1%. Você leu corretamente, mas ali está o ponto de desequilíbrio. Nós queremos ouvir em tal hora que tudo será 100%, pois a incerteza transformará aquela chance minúscula de algo dar errado num monstro, se não conseguirmos lograr compensar com outros pensamentos e disposição emocional.
A certeza consola, dá segurança. Mas é escassa como o mais raro metal. Refiro-me apenas às certezas na vida, não àquelas atribuídas a Benjamin Franklin: “Há apenas duas certezas na vida: a morte e os impostos”. O humor brasileiro retirou o termo “os impostos” e em seu lugar colocou o show de final de ano do Roberto Carlos.
Se despendemos energia, tempo e esforço mental em busca de certezas para cada coisa, seremos engolfados por uma espiral de preocupações e comportamentos que rapidamente entrarão no campo patológico, não raro com expressões místicas, manias, necessidades de ordem onde poderia haver alguma bagunça. Tornamos nossa vida infernal e a dos outros também.  
Todas as áreas da vida podem ser maculadas por esta ânsia por certezas. Há pessoas que estão demandando aprovação o tempo inteiro por coisas mínimas que fazem. O outro o valida em sua insegurança de ser bom em algo ou lhe empresta o senso de que tem algum valor em si mesmo. O(a) amante fustigará seu amado(a) com exigências de provas de seu amor, ainda mais quando possuído pelo “demônio de olhos verdes”. O pai demandará a atenção e amor do filho como forma de uma gratidão que deve ser manifesta vida afora. O patrão exigirá de seu funcionário desempenho tal que entrará na pura e simples exploração e sabe-se com que armas o fará. De si para si, aquele que busca a certeza, nunca terá autoconfiança e deplorará até seu mais incrível feito.
Michel de Montaigne afirma em um de seus ensaios quando defende que tipo de educação se deveria dar às crianças: “Tudo se submeterá ao exame da criança [e dos jovens] e nada se lhe enfiará na cabeça por simples autoridade e crédito. Que nenhum princípio, de Aristóteles, dos estoicos ou dos epicuristas, seja seu princípio. Apresentem-se-lhes todos em sua diversidade e que ele escolha se puder. E se não o puder fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta de sua opinião.”
A dúvida é para os mentalmente sãos. É para os maduros. É para os experimentados que podem lidar com ela sem desespero. É para os que alcançaram algum nível de resolução interna e nem falo que tenham feito anos de terapia, bastam as lides da vida e os sofrimentos que ela impõe. Embora, verdade seja dita, a terapia seja ferramenta maravilhosa naquele mister.

sábado, 23 de abril de 2016

Medo

O medo é um elemento fundante em nossas histórias de vida. Uma pessoa sem medo é como alguém que sofre de analgesia congênita. Há consequências possivelmente mortais. Os psicólogos evolucionistas explicam o papel do medo, essa emoção tão primitiva, como um tipo de ferramenta que dava aos nossos ancestrais maior probabilidade de se safar de um predador ou de inimigos. O que equivaleria dizer, como piada talvez, que os covardes passaram seus gens adiante na cadeia evolutiva humana. Explica-se porque todos nós temos esse comichão interno a oxidar a vida, se com ele não sabemos lidar.
A emoção medo é multifacetada, plástica, sofisticada. O medo é útil como sinal de alerta que disparará uma cadeia de reações emocionais, fisiológicas e de raciocínio que nos ajudarão a tomar decisões em momentos de grave ameaça... ou não. O medo, quantas vezes, aparece em toda sua exuberância e nada há mais que fantasia de uma amígdala que vê o que não está lá e, irrefreável, produz a doença tão conhecida como ansiedade, esta com muitíssimas caras.
Nem toda ansiedade é ruim. De fato, ela é um mecanismo perfeitamente natural e de ajustamento. A ansiedade ruim é quando nossas percepções estão doentes e desenfreadas, nos fazendo imaginar cenários distorcidos da vida e provocando sensações aterradoras e paralisantes. Fernando Pessoa falava de doenças e dores, mas aqui um fragmento de sua poesia nos serve: “Há angústias sonhadas mais reais / Que as que a vida nos traz, há sensações / Sentidas só com imaginá-las / Que são mais nossas do que a própria vida.”
Ainda bebês, este mecanismo parece adormecido. No máximo se demonstra uma hesitação. Mas há bebês bem mais reativos ao que perceberiam como amedrontador. Depois vem os medos de máscaras, escuro, estar sozinho sem um rosto familiar. A apreensão do mundo é feita aos trambolhões. Um barulho alto, o susto e pode ser associado ao medo como quando Clarissa ouvia, nas primeiras audições, seu irmão tocar sax. O som do sax alto reverbera profundo e intenso. Mas o medo pode ser dessensibilizado quando se é exposto a ele repetidas vezes: ao vivo ou num exercício de visualização. Clarissa já ouve o som vibrante do sax sem chorar.
O que é curioso é que o medo pode ser aprendido. Experiências danosas à nossa integridade, vivências traumatizantes imprimem registro profundos de medo que estarão ali à espreita, desencadeando reações tremendas ao menor cheiro de repetição da experiência. O medo pode ser incutido em nossa mente por outros. Nós pais temos muita culpa nisso. Transformamos o medo num cabresto, um chicote que deixará marcas inimagináveis no futuro do rebento.
Atribui-se a Nietzsche a frase: “A essência da felicidade é não ter medo”. Possivelmente porque o medo denunciasse a fraqueza humana que ele tanto deplorava. Mas ter medo é ser fraco? Ou é condição humana e até animal que não se pode remediar? Alguém sempre pode se drogar para não sentir medo, mas aí você não será você. O medo nos torna prudentes e cautelosos com o desconhecido. O medo dispara a síndrome do estresse que, ante uma ameaça, nos faz reagir: lutar ou fugir.
A explicação evolucionista para o medo é interessante e satisfaz aos anseios da ciência que precisa de vínculos, provas, experiências que podem ser repetidas. É curioso que a Bíblia nos apresente o medo num cenário antes idílico, o Jardim. O medo parece ser a primeira e a mais íntima emoção quando o homem, indagado por Deus, responde: eu me escondi porque tive medo. Estava com medo porque me percebi nu. Quem fez você saber que estava nu? Pergunta Deus.
As consequências deste episódio parece ser um medo instalado nas funduras do cérebro. Ali, aninhado, ele parece determinar tanta coisa como se fôssemos seus marionetes. Eis quem somos: aqueles que temem. A gente pode escolher o que temer, contudo. Porque há uma diferença entre saber do temor e ser dominado por ele. Pessoa afirma em certo poema: Há tanta coisa que, sem existir, / Existe, existe demoradamente, / E demoradamente é nossa e nós...

"No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor."  (1 João 4:18)

domingo, 3 de abril de 2016

Cueca fingida

A exigência dos fornecedores de pagamento à vista fez com que o empresário Manoel Castro, 37, mudasse o foco da sua loja virtual para a venda de produtos próprios. Ele deixou de priorizar revenda de cosméticos curiosos, como maquiagem para calvície, e passou a fabricar e vender cuecas com enchimento frontal e nos glúteos.
Fonte: Larissa Coldibeli Colaboração para o UOL, em São Paulo (28/03/2016)

O negócio ia de mal a pior. A crise batera à porta e ameaçava sucumbir o negocinho, que a duras penas se mantinha. Fornecedores aumentaram os preços e cobravam à vista, inviabilizando as vendas e o pagamento. Quem não se vira, sucumbe. Era preciso pensar algo rápido ou babau.
Os produtos que vendia eram alternativos. Meia líquida para disfarçar varizes. Olhos de vidro customizados. Aparelhos auriculares com luz neon para quem quer ir a uma rave. Muletas que brilham no escuro. Além de vários badulaques para carecas, gordos e pessoas desacorçoadas de beleza.
Vendia cuecas, mas sem muito atrativo. Um colega seu fez sucesso na esteira dos livrinhos de colorir e criou a cueca para colorir que até vendeu, mas não passou de uma brincadeira, parece que na hora “h” ninguém queria perder muito tempo colorindo a cuequinha.
Mas dizia da crise boçal que se abateu sobre seu negocim, como dizem os mineiros. Eis que uma luz vinda dos eflúvios eureca arquimedianos lhe iluminou a fronte. Ora, se sua especialidade é vender coisinhas que maquiam imperfeições mais brutas, existe uma demanda eterna desde que o primeiro cara olhou o pinto do outro: o tamanho. Nem se fale das mulheres cruéis que se riem dos menos favorecidos.
Tem gente que gasta uma pequena fortuna para ter aumentado lá o seu amigo com técnicas altamente duvidosas e às vezes doloridas pra cacete. E se inventasse uma cueca que disfarçasse aqueles montinhos mais chochos de alguns homens? Era isso! A questão era definir quanto de aumento. Sim, pois deveria parecer natural e não como quem tivesse colocado um litrão de Skol na parte frontal. O segredo da maquiagem é parecer natural, dizem os maquiadores de defunto.
Uma ideia puxa outra. Por estranho que pareça aos homens mais machistas, tem uns sujeitos que se ressentem de ter um glúteo murcho. Parece que algumas mulheres sentem atração por esta parte também. Vá se entender. Então faria duas cuecas. A standard, enchimento apenas na frente, e a ultra plus duo, enchimento na frente e atrás.
Foi anunciar no site da lojinha virtual e as vendas explodirem. Homens de todas as idades e lugares queriam sua cueca maquiada. Logo, os relatos se avolumaram nos e-mails de contato da empresa. Havia quem dissesse que a própria vida fora salva, pois carregara a cruz da pouca dotação, fora motivo de chacota, sofrera o diabo na escola, agora era um feliz proprietário de um suposto pênis de vinte centímetros.
Outro consumidor declarou um efeito colateral inesperado do uso da cueca com recheio. Sua hemorroida nunca mais fora a mesma depois do enchimento traseiro. Sentar agora era muito mais confortável e nem precisava mais ficar de ladinho. O comerciante aproveitou a deixa e mesmo debaixo de uma saraivada de reclamações da Sociedade Brasileira de Proctologia, fazia propaganda dos benefícios terapêuticos da cueca. Inventou logo que a espuma era de consistência especial, resultado de anos de pesquisa. Coisa da Nasa que nem o teflon.
Por fim, outro consumidor, na contramão do propósito original, disse que a cueca era uma excelente forma de disfarçar ereções inesperadas. (!!!) Como exatamente não explicava, visto que a cueca deveria inchar o espaço dianteiro e não diminuí-lo. De qualquer modo, fica uma importante lição às mulheres. Não se empolguem com tudo que veem. Nem tudo que parece é.
Depois de ganhar prêmios de tecnologia e design, fora os de moda masculina, atualmente trabalha numa versão eletrônica. Ela (a cueca) saberá quando e quanto aumentar as partes respectivas. Fará leitura do período fértil das mulheres, além de assepsia das partes após o coito, se me entendem. E tudo controlado por blue tooth do celular. Se deixar esse homem solto ele domina o mundo.

terça-feira, 29 de março de 2016

Por um mundo sem disfarce

Em um de seus últimos textos (publicado em português em 27/01/2016. Eco morreu em 19 de fevereiro/16) o escritor Humberto Eco questionava uma decisão das escolas italianas de proibir crianças cristãs de construírem o clássico presépio ou adornar a escola com motivos natalinos. A alegação é que fazê-lo feriria as suscetibilidades religiosas de grupos não cristãos.
Eco era ateu e filho de ateu, mas de cultura ocidental cristã, e deplorava a decisão sugerindo que em vez da proibição, todas as crianças poderiam, em suas festas religiosas, realizarem eventos para que os outros entrassem em contato com seu mundo étnico-cultural. Segundo ele, se estaria estimulando a tolerância, a troca de conhecimento. Perfeito.
É fato que especialmente os países ocidentais estão cada vez mais plurais em sua composição étnica, o que equivale dizer, cultural também. Mas será esta a solução adequada? Pasteurizar comportamentos? Silenciar manifestações cultural-religiosas? Negar valores ancestrais sendo esses parte da identidade de um grupo? Não me refiro, por evidente, a coisas danosas à saúde, que macule a dignidade das pessoas.
Uma onda nos EUA já há alguns anos mudou inclusive a expressão Merry Christmas para Happy Holidays. As grandes redes de lojas americanas aboliram a expressão que remete ao Natal cristão e o transformaram, literalmente, num Natal pagão. E não falo do desembesto das compras ou adereços outros com que o Natal foi conspurcado. A razão também é a mesma das escolas italianas: medo de parecerem discriminatórios. A coisa toda é chocante sob qualquer ponto de vista que se olhe.
Então qualquer um, com qualquer religião, por ridícula e absurda que pareça, deve ser respeitado em sua fé e os cristãos não podem, sabe-se lá porque razão, expressar seus costumes para não oprimirem – de que maneira? – estes “diferentes”? Uma pergunta simples: em que lugar do mundo não democrático – regime associado às culturas de influência cristã – as pessoas de qualquer religião podem praticá-la sem opressão e perseguição? Em que país ocidental atualmente uma minoria religiosa, apenas por expressar sua fé, foi ou é impedida de fazê-lo?
Os débeis, dentro de nossa própria cultura, ancorados na imbecilidade do politicamente correto, impõem o desconforto e o constrangimento aos cristãos em seus próprios países, impondo-lhes uma agenda frouxa e patética. Grande parte do mundo intelectual, que facilmente tem acesso às mídias, abraçou esta ideia como se não tivesse feito qualquer julgamento de sua impostura filosófica. Enquanto as minorias têm todos os direitos e devem ser protegidas, mais até que um animal em risco de extinção, os demais devem se reprimir ao expressar seu pensar ou sua crença, pois sua simples manifestação agride aos que não são daquela fé. O que significa mesmo a palavra tolerância, tão em moda nestes círculos?
Ao longo dos séculos se matou por causa da religião. Fato. Por milênios pessoas foram discriminadas e perseguidas por causa de sua fé. Verdade. Os judeus que o digam. Então a solução para este flagelo que, infelizmente, ainda está vivíssimo em nossos dias, é a discriminação da maioria? A criação de fátuas ou regras tabus, estabelecer novos índex comportamentais e de pensamento? Proteger a minoria implica em proibição ostensiva da manifestação da religião hegemônica, mesmo nominal?
Em que país islâmico estes valores são pregados e defendidos? Quando países mulçumanos deixarão de criminalizar a posse de uma Bíblia em casa? Por que nos agachamos covardemente para, diria Fernando Pessoa em seu Poema em linha Reta: “Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco.”? Ele não se defendia com a arte de um lutador de UFC, ele diz que metia o rabo entre as pernas.
Líderes ocidentais, ante sua impotência ou incompetência para enfrentar os terroristas inspirados pelo Corão, estão sempre dizendo que nem todos os islamitas são terroristas. Por que eles têm que fazer essa ressalva o tempo inteiro? Que eles se defendam. Que os muçulmanos pensem, escrevam e ajam para mostrar que a maioria, como dizem, nada tem que ver como os loucos, tarados, marginais, fanáticos que dizem se apoiar em seu livro sagrado. O ônus é deles, se é que há um.
A bem da verdade, tímida corrente na internete tem tentado fazê-lo ao dizer que o estado islâmico não os representa. Diga-se, esse movimento, tímido e capenga, só é possível no mundo ocidental onde vivem e foram acolhidos milhões de islamitas. Equivale dizer, no mundo cristão.
É hora de dizer as coisas como são. Em sua crua natureza. Não cabem subterfúgios, sinônimos adocicados ou a perversão mesmo do sentido das coisas apenas para que pareçam palatáveis às sensibilidades pusilânimes. Não será necessário gritar ou xingar ninguém, apenas dizer a realidade tal como é. Ninguém precisa ser melindrado. A verdade liberta.

PS. Olha que curioso, ao escrever o verbo xingar, imediatamente o corretor do word marcou o termo. Embora soubesse que não cometera um erro ortográfico fui ver o porquê da marcação e me deparo com a sugestão para substituir minha palavra por: falar mal. O word ficou abespinhado como meu linguajar bruto, ora vejam!

sábado, 26 de março de 2016

A grande aposta (The big short)

Remar contra a maré deve ser uma das coisas mais difíceis de fazer em qualquer sociedade ou grupo que tenha características de coesão, seja ela motivada pelo dinheiro ou por valores morais. O nível de energia emocional e psíquica exigidos na manutenção da posição quando todos ao redor estão cheios de certezas condicionadas por anos de prática é devastador: sempre foi assim; nunca aconteceu antes; a solidez das teorias estão provadas, etc.
Ao lançar o Titanic havia uma certeza arrogante de que nem Deus o afundaria. À parte das alusões religiosas que isso tenha, não foi o castigo de um Deus enfurecido em defesa de sua honra aviltada que afundou o navio na viagem inaugural, ele tinha fragilidades que simplesmente os engenheiros sequer pensaram e só o fizeram após o desastre. Onde há uma falha, o desastre está pedindo para acontecer, espera apenas a ocasião oportuna.
A dêbacle financeira de 2008 ainda pede muita história para ser contada. “A grande aposta” é um filme, baseado em fatos reais, que desvenda os bastidores de um pequeno grupo de homens que, quais profetas, anteviram a quebra do sistema. Talvez não agrade a muitos, mas há lições universais a serem aprendidas. As muitas de expressões e termos acessíveis apenas a iniciados do mundo das finanças são desvendados à pessoa comum de várias formas interessantes, algumas bem humoradas, sem escorregar para um didatismo aborrecido.
O diretor conseguiu, a meu ver, dar um tom de aventura numa história que seria tediosa dando-lhe ritmo, mostrando as questões pessoais de alguns dos protagonistas. A cruzada quase moral de Mark Baum (Steve Carell) passa honestidade, mesmo num mar revolto em que tubarões pensam somente em ganhar dinheiro – muitíssimo dinheiro – e gastar com mansões, mulheres, barcos e o que há de mais sofisticado. Mas tudo parece vazio e sem sentido. Há sempre um: e depois?
Numa cena importante, o personagem de Ben Rickert (Brad Pitt), que vive recluso por desilusão com o sistema, acaba com a alegria de dois jovens que perceberam o problema e a quem ele, por alguma razão, resolve ajudar. A dupla está feliz porque estavam certos e anteviam o ganho de milhões de dólares em sua aposta contra o sistema. Em sua tola alegria festejam cantando e dançando, então Ben manda-os parar e lhes pergunta se eles percebiam que estarem certos representava a quebra de milhares de empresas, o desemprego em massa e a pobreza de milhões. Nós não tínhamos pensado nisso, dizem eles.
Claro que ganhar dinheiro é bom, mas qual é o limite? Até onde estaríamos dispostos a ir e o que aceitaremos sacrificar? Dinheiro tem moralidade e ética? Talvez não, mas as pessoas que ganham dinheiro deveriam ter. Como é que aqueles malandros jogadores dos bancos poderiam fazer o que fizeram colocando milhões de pessoas em risco de perda de emprego e na miséria sem sentir nada por isso? Parece que todos cinicamente estavam anestesiados. O cidadão comum tampouco estava se importando com o amanhã. Se o banco oferecia crédito lastreado em vento, ou permitia o cara fazer a hipoteca da hipoteca da hipoteca para comprar uma casa maior e mais confortável do que a que tinha, como um drogado que quer mais e mais da droga, que mais dá?
O filme termina com uma previsão sombria. A despeito da hecatombe financeira em que foram evaporados mais de 11 trilhões de dólares, parece que ninguém aprendeu a lição. Outra armadilha está formada. Parece que temos que apenas esperar o próximo desastre. Desta vez o Brasil, feito à imagem e semelhança do petismo ensandecido e irresponsável, não aguenta.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Toda sociedade precisa de uma Geni


O apresentador Rodrigo Hilbert, que capitaneia o programa “O Tempero de família” está no centro de uma polêmica. Num de seus programas, ele mostrou desde a escolha até o abate de um cordeiro para fazer um churrasco. A maior parte das cenas foi exibida em seu programa com a naturalidade com que as pessoas no campo estão acostumadas para realizar este tipo de ação. Foi o estopim para um sem número de pessoas acessarem suas contas em redes sociais e, entre xingamentos e críticas ferozes, deplorarem as cenas explícitas da morte de um cordeiro.
A questão ganhou proporções exageradas como costuma acontecer neste mundo de manada de pessoas excessivamente sensíveis que defendem coisas sem atentar para o ridículo de suas posições. Ongs diversas, Sociedades protetoras de animais e toda uma fauna de gente delicada queria mostrar sua indignação. A crítica era por exibir as cenas cruas da retiradas das entranhas, a decapitação e a separação do couro do cordeirinho. Sobrou até para sua mulher, a também apresentadora Fernanda Lima. Os revoltados, impedidos de acessarem com novos posts a conta de Rodrigo, atacaram os perfis da apresentadora. A sanha por defender “sua causa” pedia sangue, fosse de quem fosse. Mesmo de quem nada tinha a ver com a história.
A coisa toda cheira a uma imposição desrespeitosa e ditatorial que é como essas pessoas agem. Elas estão certas e quem discorda será execrado em praça pública. Uma espécie de descarnamento e esquartejamento moral. Elas detêm a verdade. Encarnam os novos valores da sociedade que, frouxa e louca, perdeu todos os referenciais e quem mais grita na internete é o que tem o poder de fazer estas suas imposturas. Os outros seguem, fazem likes.
Está certo que nem todos estão aptos para ver as cenas. E nada tem que ver com as esdrúxulas posições do politicamente correto, mas por desgostar e isso não está ideologizado. Nem por isso recusam um bom churrasco de cordeiro ou deixam de se alimentar de carne.
A questão aqui não é, por suposto, as cenas que não se prestam para fazer juízo de valor sobre a pessoa de Rodrigo, mas que não impediu o apresentador de ser associado a um sádico ou coisa pior. Mas à imposição de posições ideológicas que devem ser aceitas por todos. Vivemos a era do constrangimento público – urbi et orbi. É claro que o apresentador correu para tirar as cenas dantescas de sua conta na rede. É claro que deve ter ensaiado alguma desculpa ou explicação para aplacar a fúria das sensibilidades de seus críticos. O programa precisa de audiência. Os patrocinadores ficariam menos entusiasmados com seu nome associado a um matador de cordeiros. A hipocrisia está na moda e elevada ao nível do paroxismo nos comportamentos reais e virtuais.
Há uma lógica no comportamento de manada. Que o digam os gnus correndo nas planícies do Serengueti. Evolutivamente faz todo sentido. Nos humanos é que vem o sentimento de pertença, o sentido de identidade, a segurança. Estes só se percebem como parte de seus iguais. Mimetizados uns nos outros como espelhos passivos da reprodução de imagens amordaçadas em ideias que se replicam como vírus.
Parece que tudo tem agora um tipo de valor moral/social. Ao mesmo tempo, todos os valores que nortearam esta mesma sociedade, dizendo que isso é certo e aquilo não, estão corroídos e vistos como, no mínimo, ameaças ao bem comum.  Pensar diferente não é mais o exercício da liberdade, mas a candidatura para sofrer patrulhamento, censura e perseguição na rede, lugar que oferece certo anonimato e que, por isso, instiga as mais abjetas intenções e covardias das pessoas.
As muitas fôrmas (abomino que tenham retirado os acentos diferenciais) são meras camisas de força. Forjam indivíduos apenas customizados, a essência é a mesma. Em toda sociedade, sempre houve um modelo aceitável de ser e se apresentar perante os outros, mas vive-se a robotização em massa. O pensamento único. Uma agenda determina o que se pode pensar e, claro, falar, sob pena de instantâneo julgamento. A coisa chegou num nível que já não se espera a cobrança, fazemos nós mesmos a autocensura. Tornamo-nos capatazes de nossa consciência e não me refiro ao superego.
Curioso. Ao mesmo tempo em que é de bom tom defender todo tipo de minoria, parece que algumas classes podem ser esculachadas e até há um apelo para que se faça. O cristianismo é um dos clássicos. Mas ser conservador – no sentido de Roger Scruton ou Theodore Dalrympletambém sofre o dedo em riste da manada de “modernos”. Toda sociedade precisa de uma Geni. Todo grupo precisa de seu bode expiatório. A questão é, você que pensa diferente quer se tornar este zumbi mutante que só pensa numa coisa: devorar o cérebro do outro?

domingo, 13 de março de 2016

Fé não é mágica - Little Boy

E se de repente você descobrisse que é capaz de mover os objetos com o poder de sua fé (mente)? E se esta descoberta acontecesse numa idade em que fantasia e realidade se interpenetrem sendo difícil discernir em qual dos lados se está? Suponha que este grande evento, a descoberta deste “poder”, aconteça em meio à primeira grande crise de sua história como pessoa. Uma separação de alguém que você ama e com ela mantém uma belíssima amizade, uma cumplicidade, e que esta pessoa lhe seja companheira de aventuras imaginárias fantásticas.
Este é o enredo de Little boy, segundo longa do diretor mexicano Alejandro Monteverde. Pepper é um garoto de 8 anos cujo pai vai para a guerra. A separação é terrível, mas ele imediatamente busca uma forma de trazer o pai de volta. Mágica e fé em sua cabecinha são a mesma coisa. De um lado, seu heroi de quadrinhos, Ben Eagle, uma espécie de Mandrake. Quem lembra? De outro, o padre e sua homilia sobre mover montanhas com a fé: se você tiver a fé, mesmo do tamanho de uma semente de mostarda.
Pepper, o Little boy, leva as duas ideias ao pé da letra e tem-se uma história sobre fé e descrença. O diretor simula uma fábula inocente. O lugar é paradisíaco. A vila O’hare é idílica. Encravada no sopé de um belo monte e à frente a imensidão do oceano. O colorido das casas, a luz viva do sol sugere um lugar atemporal, embora a história se desenvolva no período da segunda guerra.
Entre a perseguição de garotos mais velhos e malvados e sua luta por cumprir as regras ancestrais – uma série de atos bons que lhe deu o padre, acrescido da missão de tornar-se amigo do único japonês existente no lugar – aumentaria a fé de Pepper e, em consequência, ele poderia trazer o pai de volta.
O padre é um homem bom e acolhedor, mas parece ter uma fé que tem dificuldade de ficar em pé. Principalmente diante de questionamentos do pequeno Pepper. Hashimoto, o japonês, é o cérebro, o homem que não tem fé. Mas mantém uma saudável relação com o padre com quem joga cartas de vez em quando. Chama Deus de “amigo imaginário” do padre, que nunca se sente ofendido.
A amizade entre Pepper, o garoto perseguido pelos outros, e um japonês residente nos EUA durante a segunda guerra, parece improvável, mas ambos são muito próximos na condição. A região e a casa do japonês, ao contrário das demais, é cinza e não há jardim. Ele é o inimigo. O mal. Só haverá luz do sol na casa dele no final do filme. O filme fala, portanto, de tolerância também.
Quanto à fé, o diretor a desconstrói com as falas do Hashimoto, com as equivocadas interpretações da comunidade que, pouco a pouco, vai notando em Pepper um garoto especial. Pepper tem a fé de uma criança. Ele crê de uma forma absolutamente concreta que se sua fé chegar ao tamanho do grão de mostarda, ele trará o pai de volta. A prova é mover a montanha logo atrás da cidade. Bem, este momento chega. A coincidência com um terremoto no momento exato leva a vila quase inteira a acreditar nos poderes do garoto.
Há incréus aqui e ali. Diferentes do Hashimoto, são apenas cínicos, confusos, ressentidos. O amigo do garoto que o aceita em sua infantilidade e que o ajuda a cumprir com as “regras ancestrais”, o respeita em sua infantilidade. Teme por sua fé mágica quando sugere ao padre que a decepção de um deus que não responde – não traria o pai do menino de volta – arrasaria com ele. O padre apenas responde que o “amigo imaginário” cuidaria dele.
Por fim, o diretor parece dizer que a fé é algo para gente simples de mente e crianças que não sabem separar o poder de um mágico e os acontecimentos que a fé produz. Cegos, tomam uma coincidência por resposta de Deus. Parece perguntar: para que serve mesmo mover uma montanha e lançá-la ao mar? Mas esta é apenas uma pergunta que Little boy (Pepper) faria.