domingo, 11 de janeiro de 2009

Nem rastro de cobra, nem couro de lobisomem


O sueco Jan-Olov Ågren, que vive na cidade de Luleå, havia solicitado ao fisco sueco que trocasse seu nome para Jan-Olov Madeleine Ågren. No entanto, a instituição negou o pedido, argumentando que não seria apropriado para um homem ter um nome de mulher.

Em uma decisão inédita, o tribunal da região de Norrbotten, no norte da Suécia, determinou a anulação da decisão do fisco sueco.

Fonte: BBC Brasil

           

Desde quando me recordo, meus pais desejavam uma filha. Nem tanto meu pai, que não apitava em nada, mas minha mãe, sim. Lembro que ela me chamava carinhosamente de Maria Flor. Vestia-me em vestidinhos, lacinhos de fita na cabeça. Queria vê-la ficar contente era quando alguém, que não me conhecia, trocava minha identidade. Meu nome de batismo é dúbio, Darci. Não foi à toa. Os cachos no cabelo e o corpo de criança que nada denunciavam da sexualidade faziam o resto.

Que me lembre, gostava das brincadeiras de minha mãe. Não nego, houve um momento que aquilo me confundiu, mais pela troça dos moleques vizinhos que me chamavam de mariazinha. Ora, este era precisamente o nome pelo qual me chamava minha mãe. Assim, antes de causar raiva, era um elogio. Mas cresci normal. Eu mesmo sempre soube: sou homem.

O psicólogo ouvia em silêncio até que perguntou. E agora, quem é que me conta sua história? É o Darci. Quero dizer, o meu primeiro eu. O senhor sabe explicar porque me foi encaminhado? Sim. Acham que estou com algum tipo de distúrbio de múltiplas personalidades. Até concordo que sou vários, não que isto seja um distúrbio, uma doença... Também não tem nada a ver com espiritismo. Olhe, desde meus tempos do “teco, teco, teco na bola de gude” como canta a Gal que sou assim. Qual é o problema, minha gente?  De fato, nós estamos organizados aqui dentro, apontou para o próprio corpo. Dependendo da ocasião, entra em cena quem melhor vai se atar com ela. Antes de ser um mal é um bem. Quantas vezes Sebastião, que hoje é porteiro de boate, não me salvou de confusões de rua?  

Senhor Darci, a questão é que o senhor quer um documento oficial que enquadre pelo menos quatro de suas personalidades. A Receita, a Previdência não querem aceitar e, convenhamos, nem podem. Um diz que não sabe a quem cobrar, o outro diz que não sabe a quem aposentar. Simples, cobrem os quatro, aposentem os quatro. Por que não posso ter todos os nomes? Doutor, não sou o primeiro a ter muitos nomes no nome. Dom Pedro I teve quatro vezes mais nomes do que o que estou pedindo, nem por isso deu confusão. Verdade que todos eram masculinos, mas tirando este pequeno detalhe, não peço nada demais. Como é que vou explicar para Madalena, coitada, logo ela que é tão sensível?

Fale-me um pouco da Madalena. Ah, ela é um doce de pessoa.  É de quem mais gosto. Ela assume às quintas e sextas, mas podemos substituí-la por qualquer dos outros personagens se um destes dias cai naqueles dias dela. Madalena de TPM não há quem agüente. Aliás, digo aqui só para o senhor, não leve a mal. Madalena acha o senhor um gato.

O psicólogo pigarreou, ficou meio sem jeito. Sim, senhor Darci... que Darci o quê! Desculpe. Quem fala? É o Aderbal, a seu dispor. O senhor faz o quê? Vivo aqui com este molenga do Darci, a gostosa da Madalena e meu desafeto, o Sebastião. Sujeito ordinário, tá me devendo uns cobre aí e não paga. Outro dia cantei aquela música para ele “Por que tu não me paga sacana, por que tu não me paga?” e o malandro, cheio de razão, ainda me deu uns catiripapos. Mas somos família, uma hora resolvemos na boa. O que o chefia manda?  Bem, eu estava falando com o Darci, dá pra chamá-lo? Agora não, foi ao banheiro, é um frouxo, basta a coisa esquentar e tem desarranjo.

O senhor sabe que preciso dar um laudo sobre seu pedido de um documento com quatro nomes. Pois não. Então, quero entendê-los, para que possa dar uma resposta aos órgãos do governo. Mas claro que sou normal (coloca a mão ao lado da boca), não posso dizer o mesmo de outras pessoas aqui dentro.

Olhem, preciso falar com todos. Estou disposto a concordar com os nomes nos documentos, mas é importante que todos se manifestem. Por mim, tudo bem. Quem fala? Sebastião. Olá Sebastião, então você concorda com os nomes num mesmo documento? Menos o do Aderbal. Aquilo é um imprestável. Vive de dar golpe nos outros de nós. Até eu, que me imponho bem, já fui vítima dele. Acontece, atalhou o psicólogo, que se o Aderbal continuar a aparecer, o nome dele deve constar também. Taí, até que a idéia dele desaparecer não é ruim não. O psicólogo arregalou os olhos. Desculpa, força do hábito de outrora, é só uma brincadeira.

Sei que hoje é segunda, mas alguém aí poderia avisar a Madalena que preciso falar com ela? Silêncio. Então, saca um lenço do bolso e diz chorosa: Eu sou a Madalena. Oh, muito prazer. Você também concorda com a petição de seus companheiros? Sim, desde que me tratem melhor. São uns ingratos, uns machistas...

Gente, desculpem, mas porque vocês só deixam Madalena aparecer dois dias na semana? Uma voz pareceu sair do fundo daquele corpo de homem com o som nítido de um coro: é porque são os dias de faxina e explodiram numa gargalhada. 

Estes texto foi publicado na Coluna Eudes Alencar no Jornal Pequeno.

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