Faz tempo que aqui nesta coluna lembrei uma música do Chico Buarque que tem uma frase mais ou menos assim: ”tem dias que agente se sente como quem partiu ou morreu”. A frase faz alusão a estados de espírito cambiantes que nos acometem de tempos em tempos ou até mesmo ao longo de um dia. Os estudiosos da área neurológica dizem que ora são ondulações nas quantidades de serotonina, ora excesso de dopamina e basta uma destas maravilhas da farmacologia para se dar cabo destas inquietações da alma.
Estes estados ondulantes, mais em uns que noutros, certamente revelam algum desequilíbrio que não é só fisiológico, mas de um ser inteiro, visto que não se pode esquartejar uma pessoa e isolar suas partes como se uma nada tivesse que ver com outra. A verdade é que não se sabe dizer onde começa estas assimetrias funcionais e muitos as julgam apenas pela sua manifestação sintomatológica no corpo físico. Fui redundante aqui para não deixar dúvida.
Às vezes, eu já vivi esta experiência, é tal o desencontro em nós, que chegamos a estranhar este outro que em nós está. Recordo, não penso ser disparatado, que as incontáveis abordagens artísticas literárias e cinematográficas que tentam dar conta desta característica tão humana, têm mais verdade do que alguns cartapácios científicos. Ser e não ser um mesmo, eis a questão.
A história de um ser humano dividido foi explorada por diversos autores, talvez o mais célebre deles tenha sido Robert Louis Stevenson que no século XIX escreveu “O médico e o monstro”. O bom médico chama-se Henry Jekyll, e sua sombra e versão diabólica, Edward Hyde. David Banner e seu alter ego verde, Hulk, é uma versão moderna da história explorada nos quadrinhos. O próprio autor, Stan Lee, afirmou que se inspirou em Stevenson.
Gosto especialmente de um personagem tido como menor, por representar uma literatura desconsiderada pela academia: o Homem Aranha e sua versão em negativo, o monstro extraterrestre Venom (a história está no filme Homem Aranha 3). O nome é apropriado, pois Venom, em inglês, significa veneno, peçonha e também malignidade, malevolência. O monstro se mimetiza em seu hospedeiro e pouco a pouco assume a personalidade daquele que é consumido por ele. É, pois, uma espécie de parasita que ao fim destrói a persona na qual se instalou. Por outro lado, potencializa as características malévolas daquele a quem domina. E tanto maior este novo ser do mal, mais de veneno terá em seu corpo, podendo-se dizer que do antigo eu quase mais nada restará.
Digam-me se isso não acontece com inúmeros de nós? Não é raro se ouvir as pessoas falarem de um outro eu, dentro de si mesmas, contra quem lutam, pois aquele de quem falam como se fosse outro, lhes arrastam para práticas e caminhos que não desejam. É, por se dizer, diferente do que defende um livro recente, “Multiplicidade – a nova ciência da personalidade” de Rita Carter, que trata cada ação de uma pessoa, suas manifestações emocionais, como fossem personagens diferentes, de modo que todos nós, segundo ela, somos feitos por muitos outros, cada qual independente, às vezes com uma personagem central dominante, às vezes uma verdadeira comunidade.
Discordo do livro, ressalvando que existem sim, distúrbios de múltiplas personalidades, devidamente registrados no DSM IV e CID 10, sistemas de classificação de doenças psicológicas. Num sentido teológico, parece-me que não há a possibilidade de uma mesma pessoa ser mais de uma, exceto nas possessões demoníacas. O homem de Gadara no encontro com Jesus, nos arredores do Mar da Galiléia, afirma quando perguntado pelo seu nome: “Qual é o teu nome? Respondeu ele: Legião é o meu nome, porque somos muitos.” (Mc 5.9 – ARA) A palavra legião, neste contexto, descreve um batalhão do exército romano constituído de 6.826 homens, entre estes 726 cavaleiros. A ciência trata de negar este tipo de realidade. Nomina com termos técnicos. Ela precisa de prova da existência do diabo e seus asseclas, mas, sabemos, no sentido científico, não há. Por isso negam o que não sabem.
O gadareno perdera qualquer vestígio de humanidade. Andava nu, entre os sepulcros. Atacava as pessoas e nenhuma cadeia conseguia prendê-lo. Se automutilava com pedras e vagava num moto contínuo como máquina. Tornou-se apenas uma pocilga em que os demônios chafurdavam. O irônico é que não é o homem quem reconhece Jesus e diante dele se ajoelha, mas os demônios que clamam por uma pausa, para não serem castigados. Jesus, de imediato, expulsou-os e logo foi devolvida àquele homem a sanidade. O relato bíblico é quase poético: “Quando chegaram perto de Jesus, viram o homem que antes estava dominado por demônios; e ficaram espantados porque ele estava sentado, vestido e no seu perfeito juízo.” (Mc 5.15 – NTLH).
O endemoninhado de Gadara e o Homem Aranha-Venom têm muito
A salvação, que dissemos ser saúde no último texto, atua aqui na sanidade mental também. Paulo sabia disso, não canso de repetir sua fala: “Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto.” (Rm 7.15 – ARA). Este homem dividido traduz a guerra entre aquele que conhece a Graça do amor de Deus e o outro religioso, carnal, cada qual puxando para um lado. Admite nosso esfacelamento congênito. A salvação reconstrói, junta cacos, monta o quebra-cabeça que somos cada um de nós, portanto, produz harmonia.
Paulo sabe que há apenas uma saída, amoldar-se
A ilustração acima: Metamorfose de Narciso - 1937 (Óleo sobre Tela; 50,8 X 78,3) Salvador Dali
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