segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Passeio ao passado: com ou sem dor?

As pessoas estão, de algum modo, familiarizadas com o fenômeno psíquico chamado déjà vu. Mas até recentemente era um enigma para os cientistas da mente. Talvez porque fosse difícil o estudo de algo que ocorre sem avisar e nas circunstâncias mais diversas. E não falta quem lhe dê ares místicos como se fosse reflexo de algo sobrenatural, quando não de um dom extrassensorial explicado pela parapsicologia.
Akira O’Connor, pesquisador da Universidade de St. Andrews, no Reino Unido, descobriu uma forma de reproduzir o déjà vu em laboratório. Mais ainda, foi capaz de “fotografar” o cérebro no exato momento em que as pessoas viviam a sensação perceptiva.
Segundo a pesquisa, o déjà vu é nada mais, nada menos que uma checagem do cérebro para verificar se uma memória está errada. Se há alguma incoerência entre aquilo que vivemos de fato e o que achamos que vivemos. Curiosamente, o centro principal de memória, o hipocampo, não participa desta checagem, mas a área de julgamento e escolhas, o córtex orbitofrontal.
Pessoas aprisionadas a lembranças traumáticas ou interpretadas como tal não vivem um déjà vu, esta simulação do cérebro, esta lembrança espelho. Elas têm aquela percepção particular sobre o evento passado como verdade, mesmo que seja só aumentada. Por angustiar, esta tal verdade aciona defesas que, aos poucos, se tornam parte daquilo que a pessoa é. Uma espécie de versão 2.0 (malévola) de si mesmo. Assim, no presente, a pessoa se torna quase fruto exclusivo das estratégias defensivas, das evitações e esquivas que lhe formataram a forma de viver.
As lembranças angustiantes passam a ditar a qualidade de vida. Determinam comportamentos, acuam as relações. O labirinto consiste em muitas perguntas que levam a becos sem saída. Quase sempre começam com um “e se...”. Sensações, emoções nascem destes circunlóquios mentais, aprisionando a pessoa numa teia quase infinita. Lutar contra o passado é seu presente. A pessoa se torna um D. Quixote: vendo dragões onde haveria moinhos.
Enquanto o déjà vu simula e produz, se muito, um ligeiro incômodo com uma quase certeza, as lembranças ruins chicoteiam, amarguram e desequilibram a vida. Caminha-se enviesado cumprindo a profecia do anjo torto drummoniano: “Vai, Carlos! ser gauche na vida.”
A pesquisa citada conclui que ter um déjà vu é um bom sinal de funcionamento do cérebro. As lembranças aprisionadoras fundadas em experiências verdadeiras ou não, é uma doença. Mas ninguém precisa ficar à mercê de seus devaneios, de um cérebro que parece ter vida própria, ou de um segundo eu que simula ser nosso carrasco e torturador. A boa notícia é que há ajuda disponível. O cérebro sempre trará à consciência milhões de coisas disparatadas e se não tiver objeto onde se ancorar, ele passeará por aí, vagabundo.
Não há nada de errado em vaguear mentalmente, às vezes é até necessário. Confabular consigo mesmo. Ter tempo sozinho. Sei, muita gente detesta a própria companhia. É um ilustre desconhecido de si. Ao menor silêncio, se enche de barulhos: tv, música, computador. Então comece devagar. Quem não se aguenta é péssima companhia para os outros.
O passado ameaçador precisa ser trazido à luz do presente tal como foi. Despido das fantasias que lhe agregamos. Real e sofrido como foi. Ser olhado de frente. Mesmo com medo, pois aquele que sofre sabe as emoções ruins que ele desperta. Olhá-lo, porém, no espaço seguro da ajuda, facilita superá-lo, permitir-se pacificar e se reintegrar. Somos colchas de retalhos, mas uma colcha não é o retalho sozinho, costurado centenas de pedaços ganhou função, aquecer e proteger o que nela se abriga.

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