Acho que eu o
folheei algumas vezes. Ia à livraria, me deparava com aquele calhamaço, um livro
robusto com a foto do Nelson numa camisa quadriculada e numa postura de,
parece-me, tristeza, pois está cabisbaixo e a mão entre os olhos, como se
meditasse ou aguentasse uma notícia daquelas abaladoras. Detestei o design da
capa do livro. Um amarelo mortiço, com detalhes em preto. Encimando a capa, o
nome Nelson Rodrigues no tal amarelo anêmico e abaixo, o título: O reacionário:
memórias e confissões.
O que me
detinha era o preço. Livro no Brasil é pela hora da morte de tão caro. Eu tinha
dúvida sobre comprá-lo e ter que transformá-lo em calço de mesa ou peso pra
segurar porta. Nos lugares mais civilizados do mundo, claro que tem livro caro,
mas há sempre as opções mais em conta. Talvez a concorrência, a massa crítica
de leitores, políticas econômicas que favoreçam as publicações, sei lá. O fato
é que livro por aqui é artigo de luxo e num país de poucos leitores e uma
grande massa de analfabetos funcionais, as editoras parecem que vão muito bem,
obrigado, e pouco se importam. Talvez dirão as velhas desculpas de sempre: a
culpa é dos impostos e da alta carga dos encargos trabalhistas. Sim, porque o
autor mesmo ganha uma merreca. João Ubaldo dizia e ele não era qualquer um.
Sem mais
lamúrias. O reacionário foi uma grata surpresa. Não que não conhecesse o
Nelson. Conhecia muitas de suas frases antológicas, suas peças que viraram
filmes ou minisséries na Globo, mas nada como ler o autor em sua fonte. Foi
engraçado me deparar com certas expressões que só fazem sentido nos anos 1970.
Bater máquina? Telegrama? Bater um telefonema?
Nelson tinha
uma aguda visão de sua época, mais que isso, da humanidade. Neste sentido, ele
se mantém ainda válido e atualíssimo. Era quase visionário sobre o pensamento
dos intolerantes, da esquerda – aqui um pleonasmo – que em seu tempo fazia a
festa nos círculos intelectuais, entre os artistas e da classe universitária em
geral. Eu mesmo posso me dizer culpado em meus verdes anos de faculdade, em
pleno período de redemocratização. Mas aí, em meu favor, há que se dizer: nasci
durante o período da ditadura e cresci nela, fazia todo sentido querer votar,
participar da vida sócio-política do país, não querer a censura, etc. Os
esquerdistas, de certo modo, fizeram do discurso da redemocratização um
latifúndio seu. Até o Ulisses, personagem sobre a qual ainda falta o devido
reconhecimento, a nós nos parecia suspeito. Que tolos!
Entre os
autores brasileiros, Nelson deveria ser leitura obrigatória como forma de nos
alfabetizar em Brasil. Sobre a esquerda brasileira daquele tempo, ele já
percebia as incongruências, os disparates, o ridículo das ideias apenas por
observar o mundo onde a ideologia esquerdista vingou – quase sempre pela ponta
das baionetas e pisões dos coturnos, mas sempre pelo bem da população à qual
logo em seguida submeteriam à fome, tortura e à mais abjeta miséria –, para
desgraça dos habitantes dos países que foram tomados por eles. Isso num tempo
em que Cuba era (ainda é para o delinquente PT) o paraíso caribenho. Engraçado,
poucos dos exilados esquerdistas escolheram Cuba para se homiziar. Uns sem
coerência e maus caráteres ainda dizem que Nelson defendia a ditadura, era um
reacionário. Sim, ele se manifestou a favor do status quo, mas foi igualmente
censurado em sua obra, coisa que o deixou possesso. Quisera tivéssemos mais
reacionários como ele hoje.
O livro, uma coletânea
de textos entre 1967 e 1974, foi organizado pelo próprio autor que, num ato de
extremo bom humor, intitulou de reacionário de tanto que assim era chamado. Sua
implicância com Alceu Amoroso Lima é hilária. Sua forma de escrever que dialoga
com o leitor numa imitação de conversa, é estimulante. É um recurso que torna o
texto a verdadeira crônica. Ao mesmo tempo, é de tal sofisticação que aquilo
que era datado ganha contornos de permanência.
Ah, o texto
rodrigueano pródigo em adjetivos precisos, bordões que ele mesmo admitia
repetitivos, mas que lhe dava, de fato, a marca registrada. O olhar para além
das aparências óbvias ululantes. A capacidade de rastrear os contrafatores que
ele demolia dizendo que eram só pose. Um homem com especial habilidade de ver o
absurdo onde ele estava e que miseravelmente produz tanto autoengano. Ler
Nelson é, de certa forma, aprender a ver.
Nelson foi um
frasista incomparável. Sua ironia fina tornava seu humor elegante e ainda mais
ácido. O pensamento é de uma lógica e argúcia que não tem como o leitor não se
encantar. Ele tinha cisma com os psicanalistas, com os críticos de quem dizia
que “ou o sujeito é crítico ou é inteligente”, com a esquerda, com a burrice.
Amava futebol e a seleção, a qual chamava a “pátria de chuteiras”.
E
finalizo, repetindo uma de suas frases inigualáveis. É de 1968, mas tive a nítida
sensação que a li no jornal na manhã de hoje: “Em nossa época, ninguém faz
nada, ninguém é nada, sem o apoio dos cretinos de ambos os sexos”. Os
desesperados por curtidas (likes) se contorceriam.
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