domingo, 15 de novembro de 2015

Nelson Rodrigues

Acho que eu o folheei algumas vezes. Ia à livraria, me deparava com aquele calhamaço, um livro robusto com a foto do Nelson numa camisa quadriculada e numa postura de, parece-me, tristeza, pois está cabisbaixo e a mão entre os olhos, como se meditasse ou aguentasse uma notícia daquelas abaladoras. Detestei o design da capa do livro. Um amarelo mortiço, com detalhes em preto. Encimando a capa, o nome Nelson Rodrigues no tal amarelo anêmico e abaixo, o título: O reacionário: memórias e confissões.
O que me detinha era o preço. Livro no Brasil é pela hora da morte de tão caro. Eu tinha dúvida sobre comprá-lo e ter que transformá-lo em calço de mesa ou peso pra segurar porta. Nos lugares mais civilizados do mundo, claro que tem livro caro, mas há sempre as opções mais em conta. Talvez a concorrência, a massa crítica de leitores, políticas econômicas que favoreçam as publicações, sei lá. O fato é que livro por aqui é artigo de luxo e num país de poucos leitores e uma grande massa de analfabetos funcionais, as editoras parecem que vão muito bem, obrigado, e pouco se importam. Talvez dirão as velhas desculpas de sempre: a culpa é dos impostos e da alta carga dos encargos trabalhistas. Sim, porque o autor mesmo ganha uma merreca. João Ubaldo dizia e ele não era qualquer um.
Sem mais lamúrias. O reacionário foi uma grata surpresa. Não que não conhecesse o Nelson. Conhecia muitas de suas frases antológicas, suas peças que viraram filmes ou minisséries na Globo, mas nada como ler o autor em sua fonte. Foi engraçado me deparar com certas expressões que só fazem sentido nos anos 1970. Bater máquina? Telegrama? Bater um telefonema?  
Nelson tinha uma aguda visão de sua época, mais que isso, da humanidade. Neste sentido, ele se mantém ainda válido e atualíssimo. Era quase visionário sobre o pensamento dos intolerantes, da esquerda – aqui um pleonasmo – que em seu tempo fazia a festa nos círculos intelectuais, entre os artistas e da classe universitária em geral. Eu mesmo posso me dizer culpado em meus verdes anos de faculdade, em pleno período de redemocratização. Mas aí, em meu favor, há que se dizer: nasci durante o período da ditadura e cresci nela, fazia todo sentido querer votar, participar da vida sócio-política do país, não querer a censura, etc. Os esquerdistas, de certo modo, fizeram do discurso da redemocratização um latifúndio seu. Até o Ulisses, personagem sobre a qual ainda falta o devido reconhecimento, a nós nos parecia suspeito. Que tolos!
Entre os autores brasileiros, Nelson deveria ser leitura obrigatória como forma de nos alfabetizar em Brasil. Sobre a esquerda brasileira daquele tempo, ele já percebia as incongruências, os disparates, o ridículo das ideias apenas por observar o mundo onde a ideologia esquerdista vingou – quase sempre pela ponta das baionetas e pisões dos coturnos, mas sempre pelo bem da população à qual logo em seguida submeteriam à fome, tortura e à mais abjeta miséria –, para desgraça dos habitantes dos países que foram tomados por eles. Isso num tempo em que Cuba era (ainda é para o delinquente PT) o paraíso caribenho. Engraçado, poucos dos exilados esquerdistas escolheram Cuba para se homiziar. Uns sem coerência e maus caráteres ainda dizem que Nelson defendia a ditadura, era um reacionário. Sim, ele se manifestou a favor do status quo, mas foi igualmente censurado em sua obra, coisa que o deixou possesso. Quisera tivéssemos mais reacionários como ele hoje.
O livro, uma coletânea de textos entre 1967 e 1974, foi organizado pelo próprio autor que, num ato de extremo bom humor, intitulou de reacionário de tanto que assim era chamado. Sua implicância com Alceu Amoroso Lima é hilária. Sua forma de escrever que dialoga com o leitor numa imitação de conversa, é estimulante. É um recurso que torna o texto a verdadeira crônica. Ao mesmo tempo, é de tal sofisticação que aquilo que era datado ganha contornos de permanência.
Ah, o texto rodrigueano pródigo em adjetivos precisos, bordões que ele mesmo admitia repetitivos, mas que lhe dava, de fato, a marca registrada. O olhar para além das aparências óbvias ululantes. A capacidade de rastrear os contrafatores que ele demolia dizendo que eram só pose. Um homem com especial habilidade de ver o absurdo onde ele estava e que miseravelmente produz tanto autoengano. Ler Nelson é, de certa forma, aprender a ver.
Nelson foi um frasista incomparável. Sua ironia fina tornava seu humor elegante e ainda mais ácido. O pensamento é de uma lógica e argúcia que não tem como o leitor não se encantar. Ele tinha cisma com os psicanalistas, com os críticos de quem dizia que “ou o sujeito é crítico ou é inteligente”, com a esquerda, com a burrice. Amava futebol e a seleção, a qual chamava a “pátria de chuteiras”.
E finalizo, repetindo uma de suas frases inigualáveis. É de 1968, mas tive a nítida sensação que a li no jornal na manhã de hoje: “Em nossa época, ninguém faz nada, ninguém é nada, sem o apoio dos cretinos de ambos os sexos”. Os desesperados por curtidas (likes) se contorceriam.

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