terça-feira, 1 de setembro de 2015

Num domingo meio dia



O poeta deu nome à avenida e escreveu um dia, profeticamente como só os poetas sabem fazê-lo: Como dois e dois são quatro / Sei que a vida vale a pena / Embora o pão seja caro / E a liberdade pequena. E a liberdade foi agredida num domingo meio dia.
Num domingo meio dia, as pessoas se confraternizam nos espaços públicos, saem de igrejas, estão ou vão à praia. Num domingo meio dia, a cidade está calma como se todos dessem uma pausa no frenesi da luta diária pelo sustento. Num domingo meio dia, as ruas e avenidas estão ótimas para andar de bicicleta ou mesmo de carro sem o quase vale-tudo frenético dos dias chamados úteis, como se o domingo não fosse. Num domingo meio dia, as pessoas almoçam juntas, vão a restaurantes, às praças de alimentação – um dos poucos lugares nos shoppings que não ganharam nomes em inglês – para estar em família.
A última coisa que você espera acontecer é um assalto à mãos armadas num domingo meio dia. Não se incomode, leitor, com a aparente incoerência do plural e crase, é proposital. À luz de um sol luxuriante, ainda que numa avenida com aparência abandonada, ninguém merece ser assaltado. Minha primeira vez foi, digamos, apoteótica. Não um reles assaltante, não um furto resultante de minha displicência ou distração, mas toda uma gangue de pelo menos seis marginais. Camisas no rosto, facas e um revólver.
Eles surgiram como uma horda ensandecida que saiu da lama do mangue e invadiu a pista correndo contra o carro. Com 32º de temperatura, com sensação térmica um pouco maior, o carro estava com os vidros levantados e no ar-condicionado, porta travadas, pois o faz automaticamente ao mero movimento. Mas meus ganhos ainda não chegaram ao ponto de pagar por uma blindagem que vale mais que o carro que tenho.
Naquele segundo que antecipa o acontecimento propriamente dito, eu vi o revólver que corria em minha direção, enquanto a maioria se dirigia às portas opostas onde estavam minha mulher e filha de dez meses. Sim, pensei em atropelá-los, mas aquele revólver me convenceu de que a ideia tentadora não era boa. Parei o carro. Mantive as portas travadas, enquanto os via em câmera lenta se movendo como um enxame de insetos predadores que esmurravam as frágeis janelas de vidro.
Baixei o vidro de minha janela um pouco para avisar que estava com minha mulher e um bebê. Pedi calma. Destravei as portas e fomos invadidos como se fossem gremlins em sua versão endiabrada. Tudo que tinha aparência de valor foi levado. E voltaram para a lama do mangue. O homem armado com o revólver pegou minha carteira. Pegou o dinheiro. Pedi que devolvesse a carteira com os documentos. Ele hesitou por um breve momento e então, como que atacado pela fúria assaltante, correu em direção ao carro que chegava logo atrás levando minha carteira que, para ele, não tinha mais qualquer valor. Lamentei pela foto dos filhos, minha primeira identidade, que guardava e usava, relíquia de quando tive dezoito anos.
Além do medo, da crise emocional que vi minha mulher sofrer, ficou como que uma mancha. Uma nódoa maligna. Não o sentimento de perda de coisas, documentos, mas como se eles tivessem tocado nossa alma com algo do qual temos um misto de nojo e aversão. Agora ela é uma mácula esmaecida, mas me dá aflição de ver as pessoas entrarem naquela mesma avenida em que andei num domingo meio dia. Eu os vejo como bois em direção ao matadouro. Loucos que praticam roleta-russa por uma diversão alucinada.
Lembro o poeta Ferreira Gullar outra vez: O que se foi se foi. / Se algo ainda perdura / é só a amarga marca / na paisagem escura. 
Ao lado de certo incômodo com os lugares por onde ando e onde estaciono, a tentativa diária de viver num espaço público que se tornou a antisociedade, pois vive-se o estado de natureza como pensou Hobbes que consagrou a frase do dramaturgo romano Plauto: o homem é o lobo do homem. Apesar disso, há também um grande sentimento de gratidão a Deus. Obrigado, meu Deus.

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