O poeta deu
nome à avenida e escreveu um dia, profeticamente como só os poetas sabem fazê-lo:
Como dois e dois são quatro / Sei que a vida vale a pena / Embora o pão seja
caro / E a liberdade pequena. E a liberdade foi agredida num domingo meio dia.
Num domingo
meio dia, as pessoas se confraternizam nos espaços públicos, saem de igrejas,
estão ou vão à praia. Num domingo meio dia, a cidade está calma como se todos
dessem uma pausa no frenesi da luta diária pelo sustento. Num domingo meio dia,
as ruas e avenidas estão ótimas para andar de bicicleta ou mesmo de carro sem o
quase vale-tudo frenético dos dias chamados úteis, como se o domingo não fosse.
Num domingo meio dia, as pessoas almoçam juntas, vão a restaurantes, às praças
de alimentação – um dos poucos lugares nos shoppings que não ganharam nomes em
inglês – para estar em família.
A última coisa
que você espera acontecer é um assalto à mãos armadas num domingo meio dia. Não
se incomode, leitor, com a aparente incoerência do plural e crase, é
proposital. À luz de um sol luxuriante, ainda que numa avenida com aparência
abandonada, ninguém merece ser assaltado. Minha primeira vez foi, digamos,
apoteótica. Não um reles assaltante, não um furto resultante de minha
displicência ou distração, mas toda uma gangue de pelo menos seis marginais.
Camisas no rosto, facas e um revólver.
Eles surgiram
como uma horda ensandecida que saiu da lama do mangue e invadiu a pista
correndo contra o carro. Com 32º de temperatura, com sensação térmica um pouco
maior, o carro estava com os vidros levantados e no ar-condicionado, porta travadas,
pois o faz automaticamente ao mero movimento. Mas meus ganhos ainda não
chegaram ao ponto de pagar por uma blindagem que vale mais que o carro que
tenho.
Naquele segundo
que antecipa o acontecimento propriamente dito, eu vi o revólver que corria em
minha direção, enquanto a maioria se dirigia às portas opostas onde estavam
minha mulher e filha de dez meses. Sim, pensei em atropelá-los, mas aquele
revólver me convenceu de que a ideia tentadora não era boa. Parei o carro.
Mantive as portas travadas, enquanto os via em câmera lenta se movendo como um
enxame de insetos predadores que esmurravam as frágeis janelas de vidro.
Baixei o vidro
de minha janela um pouco para avisar que estava com minha mulher e um bebê.
Pedi calma. Destravei as portas e fomos invadidos como se fossem gremlins em
sua versão endiabrada. Tudo que tinha aparência de valor foi levado. E voltaram
para a lama do mangue. O homem armado com o revólver pegou minha carteira.
Pegou o dinheiro. Pedi que devolvesse a carteira com os documentos. Ele hesitou
por um breve momento e então, como que atacado pela fúria assaltante, correu em
direção ao carro que chegava logo atrás levando minha carteira que, para ele,
não tinha mais qualquer valor. Lamentei pela foto dos filhos, minha primeira
identidade, que guardava e usava, relíquia de quando tive dezoito anos.
Além do medo,
da crise emocional que vi minha mulher sofrer, ficou como que uma mancha. Uma
nódoa maligna. Não o sentimento de perda de coisas, documentos, mas como se
eles tivessem tocado nossa alma com algo do qual temos um misto de nojo e
aversão. Agora ela é uma mácula esmaecida, mas me dá aflição de ver as pessoas
entrarem naquela mesma avenida em que andei num domingo meio dia. Eu os vejo
como bois em direção ao matadouro. Loucos que praticam roleta-russa por uma
diversão alucinada.
Lembro o poeta Ferreira Gullar
outra vez: O que se foi se foi. / Se algo ainda perdura / é só a amarga marca /
na paisagem escura.
Ao
lado de certo incômodo com os lugares por onde ando e onde estaciono, a
tentativa diária de viver num espaço público que se tornou a antisociedade,
pois vive-se o estado de natureza como pensou Hobbes que consagrou a frase do
dramaturgo romano Plauto: o homem é o lobo do homem. Apesar disso, há também um
grande sentimento de gratidão a Deus. Obrigado, meu Deus.
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