segunda-feira, 8 de junho de 2015

Recusa em esquecer: medo de perder a identidade



Este filme passou longe das salas de cinema que só exibem blockbusters. A moda agora nos cinemas, inclusive, é banir filme legendado. Os cinemas de dois shoppings de São Luís só passam agora filmes dublados. Estão em regiões de classe média baixa – nem sei se existe. O povo não gosta. Não consegue ler e assistir ao filme ao mesmo tempo. O mercado alimenta a mediocridade e se alimenta dela.
Enfim, vamos ao que interessa. The World Made Straight (2015), sem tradução em português, é um daqueles filmes que se fica pensando tempos depois. Parece que, como diz o personagem Leonard, mas falava ele a respeito do tempo, é feito em camadas.
Começa com a execução sumária de um grupo de pessoas por soldados confederados. Cem anos depois, como o mundo daquela gente é feito em linha reta, a execução ainda produz seus efeitos. O jovem Travis Shelton é descendente daqueles que foram executados. O professor Leonard descende dos executores. Aparentemente uma briga de família. Os Shelton eram menos confederados, o que significava ser ianque, do que desejavam seus vizinhos.
A fotografia do filme é muito bonita, mas melancólica. Ela serpenteia o rio que passa espremido pelas montanhas Apalache. Não há cidade. As casas estão distantes umas das outras, o que reforça um ar de hostilidade e solidão. É frio o tempo inteiro. Sombrio. A vida está paralisada. Ela não corre como o rio.
O jovem Travis não tem futuro, largou a escola. Busca um lugar, enquanto convive perigosamente com a marginalidade. Tem uma relação conturbada com o pai que, há muito, deixou de ser referência de qualquer coisa. O pai não facilita. Eles vivem a um triz da agressão física.
O professor é um homem desiludido, em busca de redenção, se ela aparecer. Vive num treiler com a drogada Dena. Enquanto isso, trafica pra um sujeito que canta gospel na igreja. Ele está ali porque perdeu seu lugar na comunidade por que um aluno, com quem teve um problema, acusou-o falsamente de ser traficante na escola. Em seu carro, foram encontradas as drogas. Ele foi preso. A mulher o abandonou e levou a filha do casal.
O destino envolve o professor e Travis. A amizade entre os dois dá ao professor um filho e ao jovem, um pai. O professor tem muito documento da guerra. O jovem se encanta e se torna meio obsessivo com o massacre de seus parentes. O professor se identifica com seu tataravô, médico, que discordava da execução, mas nada fez e nunca se perdoou. Travis se identifica com o jovem David Shelton que, à época do assassinato, tinha apenas 12 anos.
O filme ganha volume e mais dinâmica e, entre algumas reviravoltas em que verdades velhas vêm à tona, as rixas e tensões também aparecem em dois planos: o passado e o presente. O traficante, a drogada Dena, o professor e Travis formam a trama de uma história antiga que mantém sua força, porque as pessoas não se permitem esquecer, pois seria como perder suas identidades.  
O professor, por causa da história de seus familiares, recusa-se a ser violento, ainda que seja exímio atirador e traficante por um tempo. As armas, porém, diz ele, são mais para intimidar e impor respeito aos usuários e ao traficante de quem compra a droga.
Em certo momento, o professor diz a Travis: Deus me pegou muito cedo. Ele sondava se o jovem percebia o mundo espiritual ainda vivo, no lugar onde ocorreu o massacre. Travis não faz ideia. Ele ainda está embrutecido das dores passadas, contadas repetidamente a fortalecer a versão que sustenta o ódio e a desconfiança entre as pessoas no presente.
Leonard estimula Travis a retomar os estudos. O jovem havia achado um rumo sem volta. O professor, diferente de seu ancestral que morre entre dores físicas por causa de um tiro na barriga, recusando-se a tomar qualquer remédio que aliviasse como forma de autopunição pela sua participação no massacre, tem sua chance de redenção. 
Sua defesa intransigente pela paz. Sua recusa de nunca atirar em alguém o leva a escolhas crísticas. Sem intenção, ele faz o a papel de salvador para Dena e Travis. Sem perceber, sua caminhada o fazia ser o profeta Ozéas, a quem foi pedido que se casasse com uma mulher de prostituições numa das passagens mais bizarras da Bíblia. Ela o traía, voltava e ele a recebia. Curava suas feridas, abrigava e outra vez a amava, como se seu amor por alguém perdido saneasse sua alma negra dos pecados seus e dos antepassados. O mundo não segue em linha reta. Tem andar de Bêbado.

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