domingo, 24 de novembro de 2013

Amorosidade



Tradicional compilado de atos técnicos e burocráticos, o "Diário Oficial" da União teve seu toque de sensibilidade na edição de ontem. Em uma portaria assinada pelo ministro da Saúde, Alexandre Padilha, apresentou o conceito de "amorosidade".

Fonte: Folha de São Paulo (Johanna Nublat, de Brasília. 21/11/2013)
A ouvidoria central estava atulhada de reclamações naqueles dias. Na semana anterior, o Diário Oficial publicara um princípio que doravante regeria as ações da política nacional de educação popular em saúde. Era uma tal de “amorosidade”. Alguns dicionários definiam a palavra, lacônicos assim: qualidade do que é amoroso. Convenhamos, não dizia muita coisa. Ao desconhecedor dava na mesma, mas havia ali uma pista. Ser amoroso era até fácil saber o que é.
Para chegar a este primor de paradigma, o Conselho Nacional de Saúde debatera o tema por anos. E definiram tanto o termo como a política que ele inspiraria. Amorosidade significa “a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado apenas em conhecimentos e argumentações logicamente organizadas.” Sim, você sentiu cheiro de tolice, palavrório, marmotagem.
A definição da política parece tão escalafobética quanto a amorosidade mesma. É a glorificação das meisinhas, das simpatias e artes mágicas e benzimentos? É barato, já está pronto e testado, agora é só ensinar ao povo do “mais médicos”.
O inusitado para a ouvidoria era que não recebia mais reclamação de maus tratos, descaso e os maus bofes dos servidores. Não havia um erro médico sequer. Era excesso de carinho e de amorosidade de que o povo se queixava. As equipes de saúde das clínicas e hospitais foram pegas de surpresa. A prática da amorosidade seria obrigatória. Ninguém dizia exatamente como. Você, leitor, sabe como se dá amorosidade pros outros? Um disse: meu coração num vai guentar! Uma mais assanhada queria saber: com ou sem sexo? E quem era que sabia?
Uma senhora, estupefata, dizia que o enfermeiro, depois de um curativo, tascara-lhe um beijo na boca. De língua, arrematou. Estava indignada porque esperou pela segunda bocaça que não veio. Requeria o tratamento completo, sob pena de acionar o Ministério Público por desídia do profissional que a deixou no vácuo.
Um homem reclamava que sua mulher o esconjurou e pedia o divórcio porque chegou justo quando a enfermeira lhe abraçava de forma lasciva, assim entendeu. Mesmo imóvel, outras partes ganharam vida e ele protestava inocência. Inquirida, a enfermeira disse que apenas seguia o protocolo determinado pelo SUS. Ela mesma, se pudesse, não abraçava nem beijava ninguém, mas era seu sustento e apenas seguia ordens. Que não sabia como demonstrar a tal da amorosidade se não daquele jeito.
Com ou sem preliminares? Preliminares? Um monte de gente não sabia o que era aquilo. Eu só pego na mão, reclamava uma solteirona “misandrópica”. O sindicato manifestou-se contra esta amorosidade excessiva. Temia dst’s e gravidez indesejada. Tinha que ser amoroso todo dia? E nos dias de mau humor? O ministro não queria saber. A amorosidade era para todos e todo dia, da uti à recepção. Da atenção básica à alta complexidade.
Para além das logorreicas definições, os servidores se apegavam apenas à definição de amoroso: que sente amor; terno; carinhoso, meigo. Propenso ao amor. Se era isso tudo, não havia como ser amorável se não com atos concretos, pois se na tal política recomendava ir para além do diálogo, quer dizer, a sugestão clara era para se deixar de lado os entretantos e se se ir direto para os finalmentes. 
O Ministro da Saúde que chancelou a patacoada toda se viu espremido pelas críticas e correu para dar explicações que, naturalmente, só pioraram as coisas. O fato é que o povo não estava preparado para tanto amor assim.
PS. A ilustração é do Alpino

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