Talvez todos
nós sejamos em algum grau estrangeiros. O estranhamento é uma experiência que
não poucas vezes afeta a própria percepção de nós mesmos. Como se o senciente
não habitasse seu corpo e nele fosse um visitante, um intruso. Uma espécie de
dejavú ao contrário. Mas não é disso que trata “O estrangeiro” de Albert Camus.
Escrito em
1942, reflete a convulsão do absurdo da guerra, do sem sentido da vida e da
existência. Seus textos foram categorizados na escola literária do absurdismo.
Ganhou o Nobel de Literatura em 1957 e falece três anos depois, num acidente de
carro. Os fatos de sua morte parecem conspirar de maneira estranha, uma quase
prova de sua forma de ver o mundo. De fato, suas histórias criam contradições e
eventos que não encontram qualquer explicação a não ser por certo absurdo
estonteante.
A história se
passa em Argel, cidade em que Camus viveu até 1939, quando migrou para Paris e
foi colhido pela eclosão da Segunda Guerra mundial. Viveu a resistência
francesa de forma engajada e o domínio nazista na França.
Mersault é um
homem jovem, solteiro, trabalhador dedicado num escritório, tanto que seu chefe
chega a propor sua mudança para a Metrópole para cuidar dos negócios da
empresa. Em meio a uma vida despreocupada e previsível, certo dia recebe um
comunicado: sua mãe, que estava num asilo, morrera. Este evento se tornará tão
importante em sua breve história que a definirá para sempre como se sua
ocorrência, alheia a qualquer lógica de uma narrativa, ao acaso, se imiscuísse
aleatoriamente em seu destino para determiná-lo.
A relação com
uma mulher, as atividades do trabalho, as amizades, a rotina, o lugar onde mora,
os vizinhos e o romance são descritos pelo olhar de um observador distante, não
envolvido, inclusive sobre o próprio personagem Mersault acerca de si mesmo,
ele que é o narrador. Todo lugar, para este homem, é um não lugar. A vida se
manifesta numa sucessão de momentos que acontecem porque tem de acontecer. Não
há plano, premeditação, projeto, expectativa e embora a palavra “esperança”
surja nas páginas do romance, parece não significar a espera venturosa de um
acontecimento.
A amante de
Mersault é descrita como uma mulher vivaz, sorridente, solar. Eles vivem bons
momentos e em algum momento, desenvolvem um diálogo estranho que explica bem
este homem em tudo o mais. Ela praticamente lhe pede em casamento. Mersault
aceita. Ela lhe pergunta se ele a ama. Ele diz que não, que isso não faz
sentido. Ela quer saber por que ele quer casar se não a ama. Ele diz que tanto
faz. Ela vai mais longe. Se fosse outra a lhe propor casamento, ele aceitaria?
Mersault diz que sim. Apenas, por acaso, ela fizera a proposta primeiro. A vida
deste homem é um enorme entediado “tanto faz”. Um ou outro momento lhe salta:
um sol do amanhecer, a noite fresca, o banho de mar, comer, beber, como atos
voluntários movidos por um prazer não inteiramente feliz.
Como tudo
acontece numa sequência onde o antes e depois são meros e absurdos acasos,
Mersault acaba por matar um homem de quem não tinha exatamente uma rixa ou
raiva. Não é uma morte por vingança, ganância, até o simples prazer de matar, a
ira ou a loucura. Ela simplesmente acontece. Mersault descreve os primeiros
dias na prisão, suas relações com os guardas e o juiz com curiosidade, como se
tudo acontecesse com outro. A realidade não se lhe impõe à consciência.
No julgamento,
fala-se mais da morte da mãe e sua indiferença, desrespeito, e até descaso do
filho em relação a sua genitora o que termina por pintar-lhe um monstro
insensível e sem alma. Mersault choca o juiz com seu ateísmo, o que o coloca em
posição ainda mais delicada como se fosse obrigado a crer em Deus e sua não
crença justificasse as razões do assassinato. Ele não crê por convicção. Um fundamento
filosófico, uma postura reativa com a lembrança de um pai ausente e opressor
projetada em Deus. Deus não está nas cogitações dele como não estariam nas de
uma formiga.
O desditoso
homem tem suas próprias explicações para tudo quanto o acusam, mas sequer tem ânimo
de defender-se ou aclarar suas razões. O sistema de justiça segue seu curso
inexorável. Os atores estão todos no palco: juiz, advogado, promotor, jurados,
plateia. Nenhuma das requisições do julgamento é esquecida, pois assim
determina a lei. Ele tem direito a ampla defesa, mas é como se já estivesse
condenado desde o início. O sistema pede sangue e os rapapés apenas justificam
a normalidade da sociedade civilizada.
A
religião não o consolará e ele a recusa, para horror do padre que queria fazer
seu papel de consolar, é impedido e se frustra por isso. Talvez, entre paredes,
o estrangeiro tem seu último ato de liberdade ao recusar o que outros querem
fazer porque é normal, mas sequer sabem por que o fazem. Ele está livre com
seus pensamentos, livre para esperar que o sistema funcione bem até o fim e a
máquina que lhe porá fim à vida funcione perfeitamente. É seu máximo interesse
que nada falhe, afinal Mersault parece ter encontrado seu lugar e ele é dentro
de si mesmo.
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