sábado, 29 de outubro de 2011

Defuntos caloteiros


A prefeitura da cidade espanhola de Zaragoza lançou uma campanha para alertar familiares inadimplentes que quem não saldar dívidas com cemitérios locais terá os restos mortais de seus entes exumados.
Aproveitando a chegada do dia de Finados - que na Espanha é celebrado no dia 1º de novembro - a prefeitura colocou adesivos nas lápides advertindo que a sepultura está com pagamento vencido e que os familiares tem 15 dias para saldar suas dívidas, em geral ligadas a taxas de manutenção dos cemitérios. relacionadas a taxas.
Fonte: Anelise Infante (De Madri para a BBC Brasil - 28 de outubro, 2011)

A família chegou ao cemitério com as dores distantes, as lembranças frescas e, por que não dizer, com certa alegria em, digamos, rever os parentes enterrados no jazigo familiar. As crianças faziam perguntas inoportunas e enchiam a paciência porque não entendiam a razão de visitar um cemitério, ainda por cima “ver” pessoas que elas nunca conheceram.
O pai, empertigado, disse que era um dever familiar visitar os parentes, afinal, era uma vez só no ano e eles, coitados, passavam os outros 364 dias sozinhos. Era também um dever cristão, sem contar que relembravam boas coisas e riam de episódios que só o cemitério mesmo para fazê-los voltar no tempo.
Estavam ali, quase displicentes naquela fresca manhã de finados, quando viram de longe, circundando a base da estrutura, uma faixa que dizia “Jazigo vencido” em letras vermelhas garrafais. Sobre o túmulo, um estranho amontoado de ossos, formando um quebra cabeça asqueroso. Ainda estavam em choque, aquilo só poderia ser uma brincadeira de mau gosto. Não era. O filho mais novo, num segundo, já havia pegado um fêmur e começou a bater no irmão mais velho que abriu um berreiro. A mãe, atarantada, tentou impedir que o outro filho fosse nocauteado e acabou derrubando um dos crânios que rolou rua abaixo com a boca escancarada num sorriso apavorante.
O marido deu um berro de pavor e indignação e agora, quem era quem? Somente naquela sepultura havia umas três gerações da família e estavam misturados. Procurou a direção do cemitério, exigiria explicações. Mais que isso, pediria uma indenização por falta de respeito com sua família.
O gerente do cemitério disse que enviou mais de dez correspondências aos mortos cobrando anos de taxas não pagas. Ou ele pensava que só porque estavam mortos não teriam que pagar para ficar ali? Aliás, disse ele, a inadimplência havia chegado ao cúmulo que pensavam até em falir o cemitério. Mas nem todos são salafras, olhe aqui seu Euzébio, paga direitinho. Mas para cada pagante há dezenas de defuntos caloteiros.
Ele não sabia o que dizer e falou o que lhe veio à mente. Quem sabe eles não tivessem recebido a correspondência, afinal o correio vive em greve. Ele mesmo, em várias conversas com eles, nunca soube de dívida nenhuma. Como assim, conversas com eles, quis saber o gerente do cemitério. Só você que é um desalmado que não fala com seus mortos. Mas o que ele queria saber era como é que iam montar os corpos novamente. Eu não quero nem pensar no que o vovô vai dizer quando se perceber com uma anca da tia Gertrudes, logo ele que sempre foi machão. E tia Quina, com a cabeça do primo Ernesto.
Desculpe, senhor, mas estamos numa crise severa e o senhor não vai acreditar na quantidade de defunto velhaco que temos aqui e olha que avisamos com antecedência. A ordem aqui é de despejo para quem não pagar. Eles se valem de sua condição, querem que tenhamos pena deles, mas e as taxas atrasadas e os vivos que trabalham, não comem? Não quero saber de suas razões. Processarei este cemitério, no mínimo, por vilipêndio dos corpos e covas, quem sabe não cabe aí uma brecha legal no estatuto do idoso.
Ao voltar à cova, o pai encontra a esposa em estado de choque. Pega um crânio: vovó, é a senhora? Solta, pega um braço que se esfacela: desculpe tia Quina, é que a senhora está tão magrinha. Primo Ernesto! Os meninos, já reconciliados, faziam embaixadinhas com a cabeça do tio para total desespero dos pais.   

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