segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Coração: bússola apontando para o sul


A metáfora do coração como centro da alma é coisa muito antiga. Os egípcios, no sagrado livro dos mortos – cuja origem data de 1500 a. C. – tinham sua religião, no que diz respeito aos atos dos homens, baseada na retidão que demonstrasse o coração. Os egípcios o chamavam de Livro de sair para a luz.

Além de orientações sobre como o mortal deveria se comportar para ter um bom julgamento diante dos deuses, o livro revela uma cena intrigante em que o mortal, ao chegar diante da porta do paraíso, teria o coração pesado na balança da verdade. Uma das bandejas continha uma única pena, retirada do ornamento na cabeça de Osíris, na outra o coração daquele que seria julgado. Estava em jogo os atos praticados em vida que deveriam ser regidos pela justiça e pela verdade.

Um coração deveria ser leve como uma pena, pois caso fosse mais pesado, imediatamente apareceria uma espécie de demônio que devoraria o mortal que ali se encontrava à espera do veredicto. Sua alma (ka) teria um fim eterno.

 Jeremias, entre 600 e 500 a. C., período de seu ministério como profeta, faz uma afirmação desconcertante: “O coração é mais enganador que qualquer outra coisa, e dificilmente se cura: quem de nós pode entendê-lo?” (Jer 17.9 – EP). Segue-se a esta frase, a afirmação de que somente Deus pode conhecer o coração. Ele sonda os pensamentos para julgar a cada um conforme o fruto de suas ações.

Eis o mistério do qual conhecemos apenas parte do processo. É que somos como navios. Depois de muitos mares navegados, haverá toda sorte de craca encrustada na estrutura submersa. O arrasto aumenta cada vez mais, torna a nau lenta e se não for limpa, poderá ganhar um rombo no casco e ir a pique. De algum modo, é a relação com Deus que ajuda a esclarecer um para si mesmo. A religião não pode mediar este processo, por excessivamente versicolorida. Jesus é a versão de homem e de Deus cuja tradução se pode aproximar e aprender.

Estar aqui sugere, se não um determinismo, um sentido de propósito. Este, porém, é construído nas muitas relações que teremos com toda gente. Isto tudo nos molda, enraíza razões em nossas profundezas que emergem, como bem lembra Freud, de maneiras estranhas, quase incompreensíveis para aquele que se lê. Jeremias sabe por quê. É que o coração é desesperadamente corrupto (ARA). Outra versão bíblica diz: o coração é irremediavelmente mau (VC). Ainda outra traduz esta mesma passagem como: ele (o coração) tem uma doença incurável (NVI).

Cada um de nós, na ânsia de se saber, está quase sempre perplexo. Blaise Pascal, filósofo, diz que o coração tem razões que a própria razão desconhece. Se desconhecemos, não é por falta de sabedoria. É porque somos permeáveis, vazados de influências que nos rebolam para cá e para lá. O que é somente meu que explique minha razão real de ser e de querer? O que é dos outros que assimilei como esponja e se faço quero, de mil maneiras que não percebo, apenas atender às suas expectativas?

O coração doente se inclina para o mal como afirma Jeremias, mesmo sabendo sobre as leis das coisas boas. Por que não basta saber. Quando apenas se sabe, como quem decora falas para um papel, tão logo acabe o ritual religioso, um volta a ser si mesmo. A religião enquanto manifestação humana despida da transcendência é anestésico. Não aperfeiçoa, adestra. Não esclarece, enevoa. Não liberta, agrilhoa.

A espiritualidade, por outro lado, é um permitir-se habitar pela graça que é um único remédio para se aceitar de forma plena. A graça é quando Deus olha para um e lhe aceita, ainda que, como diz Jeremias, Ele saiba exatamente que para além da máscara alegre refletida no seu espelho fosco, há um mal íntimo que verniza seu coração. Este ato de bem divino é sempre o ponto de partida de gente em refazimento que caminha para a luz.  

ARA – Almeida Revista e Atualizada

EP – Edição Pastoral

NVI – Nova Versão Internacional

VC – Versão Católica

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