quarta-feira, 11 de março de 2009

Todos nós somos dois-em-um



Temos uma dificuldade enorme de viver o cristianismo, e quando parecemos conseguir, o matamos tornando-o religioso. Entenda-se religioso a mecanização da graça, a legalização da misericórdia, a comercialização da salvação, a infantilização da relação com Deus e por fim, não menos importante, a transformação dos grupos (igrejas) em guetos, o que toca a relação entre as pessoas.

A questão não reside, em meu entender, porque os valores do evangelho sejam demasiadamente elevados, mas porque somos cindidos, o que a psicanálise descobriu séculos depois, mas Paulo já falava em sua carta aos Romanos.

Ser cindido significa estar em permanente estado de indefinição. Tiago chama isso de “ânimo dobre” (Tg 1,8; 4,8). Mente dividida, vacilante, incerta. Temos dificuldade de fazer escolhas certas, porque somos atraídos pela satisfação imediata. Somos viciados em prazer instantâneo. Por isso mesmo, ele nunca preenche o precipício da alma. É como uma criança que gosta mais de doces e comidas gordurosas do que o alimento adequado às suas necessidades. O fabricante trabalha exatamente nisso. O produto é para comer, antes, com os olhos e somente depois o paladar.

Ademais, temos uma propensão a ser tutelados. É inato, e a religião, com centos de regras e rituais, que nada mais é que reduzir o sagrado, materializar o significado transcendente em atos, se presta como nada a este papel. Delegamos a ela o caminhar para um céu que ela aponta. Desculpamo-nos e entregamos nossas almas aos seus ditames, pois se a agradarmos, tal como nos é ensinado, o paraíso nos esperará. Não quero que pensem que deploro a religião por alguma cisma. Reconheço sua importância, mas ela sempre é um perigo se a servimos e não o contrário, quando ela é apenas o meio para realizarmos o bem e agradar a Deus.

Aqui estamos, talvez por que nos seja difícil ultrapassar a barreira que a “carne e o sangue” nos dão, premidos pela força chamada desejo, que não é fruto de uma necessidade fisiológica tal como o entendemos comumente, pois se assim fosse, aí teríamos uma desculpa. Desejo é a perversão daquela, daí porque os antigos pais do deserto descobriram e regulamentaram o que se definiu posteriormente como pecados capitais.

Cada um daqueles pecados perpassa uma necessidade básica que, transformado em desejo de realização pessoal, como substitutos do verdadeiro fundamento nascido no amor e arrependimento, tornam-se satisfação que devoram todos os que a eles dão livre curso.

Suponho que Paulo queira apontar nesta direção quando diz: “Mas esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado.” (1 Co 9.27) A compreensão equivocada deste versículo empurrou milhares a auto flagelar-se como forma de dominar seus impulsos. O contexto nos ensina que Paulo apenas queria dizer que sua vida tinha uma meta definida e tudo que fazia tinha um único propósito: cumprir a vontade de Deus, pois a Ele estava absolutamente entregue e nisto ele se esforçava para ser exemplo dos fiéis.

Em João 6, Jesus faz um discurso em que fala de coisas difíceis de entender, a tal ponto que, ao final da fala, Ele olha ao redor e a maioria das pessoas havia ido embora. Os ouvintes se chocaram com as comparações que fez: “Eu sou o pão que desceu do céu.” Eles se voltam uns para os outros e questionam: “Não é este Jesus, o filho de José? Acaso, não lhe conhecemos o pai e a mãe? Como, pois, agora diz: Desci do céu?” (vers 42)

Eles são incapazes de ultrapassar o fato presente. Não têm passado nem futuro. Suas vidas acontecem apenas naquele exato momento. E neste momento tão somente o desejo é real. É a barriga que ronca, são os barulhos das ruas, apenas isto é real, como bem trabalha CS Lewis em seu livro “Cartas do Coisa Ruim” quando o demônio desvia o pensar do ateu na biblioteca, no exato instante em que ele se permite questionar se a realidade se reduz apenas a este tempo. Na rua, o homem sorve o ar, olha as pessoas que caminham atarefadas, os carros que passam e pensa: Isto é que é o real.


Ao final do discurso, Jesus se volta para seu grupo mais próximo e pergunta: “Será que vocês também querem ir embora?” (vers 67). Ao que Pedro responde: “Quem é que nós vamos seguir? O senhor tem as palavras que dão vida eterna!” (vers 68) Pedro, que noutro momento (Mt 16.16) dá uma resposta que ultrapassa a mera compreensão natural, crescia na relação com Deus deixando para trás as fronteiras de “carne e sangue”. Cada vez menos, ele é presa de sua fragilidade.

Os poetas também, além de Paulo, perceberam esta cisão interna que carregamos. Cecília Meireles tem um poema “Ou isto ou aquilo”, que diz: “É uma grande pena que não se possa / estar ao mesmo tempo em dois lugares! / Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, / ou compro o doce e gasto o dinheiro. / Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . . / e vivo escolhendo o dia inteiro!” E finaliza: “Não sei se brinco, não sei se estudo, / se saio correndo ou fico tranqüilo. / Mas não consegui entender ainda / qual é melhor: se é isto ou aquilo.”


Creio que seguir a Cristo, que supõe o ser cristão, só pode se basear na entrega sem qualquer reserva. Posto isso, não há escolhas a serem feitas, todas estão realizadas nEle, logo não há desejo ou este caminha para ser escravo da única coisa que fará sentido: agradá-Lo. Não digo que seja fácil, por exemplo, escolher entre viver e morrer por causa do amor ao Senhor. Não quero ser leviano quando só posso imaginar tal situação, mas em sentido absoluto, alguém entregue a Jesus não pressupõe mais divisão, escolha entre isto ou aquilo, porque apenas nEle e por Ele fará sentido viver, entender-se, sentir, realizar.

Texto publicado na Página Gospel - Jornal Pequeno

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