Entrei na sala de cinema que, por alguma razão,
estava mais escura que de costume naqueles minutos que antecedem a projeção.
Senti um pouco de insegurança, enquanto meus olhos se adaptavam às trevas e eu
me dirigia ao lado oposto onde escolhi a poltrona. As luzinhas guia estão apenas
na escadaria.
Sentado, dei-me conta de que não havia alma viva na
sala. Sensação estranha. E sim, a sala estava bem mais escura que o normal. E
assim assisti a “Saul Fia” (versão húngara do título) ou “Son of Saul”, “O
filho de Saul” em português.
Nos primeiros dois minutos, talvez, embora haja
som, a imagem está desfocada. Já pensava em reclamar com o projetista, mas
desconfiei que aquilo era proposital. Meus pés tateando o chão do cinema,
imagens não nítidas pareciam confundir realidade e ficção. Então percebo que o
foco começava a ganhar nitidez e o rosto macilento de um homem assoma à tela. Assim
seria durante quase todo o filme. Era a estética escolhida pelo diretor. O
rosto angustiado, taciturno, monossilábico, a imagem estreita, sufocante,
claustrofóbica. O outro plano é apenas aquilo que vê o homem como se fosse o
jogo Doom. A câmera alternará entre esses planos, às vezes trêmula como se quem a segurasse sofresse
de verdade as agruras da situação.
Ouvem-se ordens, falas, barulho das pessoas se deslocando
saídas de um trecho de floresta. Imagens ao ar livre serão poucas. O homem as
guia para certo local. Chama-se Saul e é membro de um Sonderkomando, lotado num
dos crematórios de Auschwitz-Birkenau. Alguém anima o grupo com voz firme. Precisamos de todo tipo
de profissional. Rápido. Tirem suas roupas, ponham no cabide, elas estarão aqui
quando voltarem. O banho é para desinfecção. Depois a sopa. Rápido, vamos. A
sopa vai esfriar. A voz com autoridade, as pessoas em movimento, borradas, o
rosto de Saul que traduz medo, desespero, automação, distanciamento de tudo
aquilo. Nem um músculo de seu rosto treme, mesmo quando as pessoas,
desesperadas, tentam sair do “banho”, sufocadas pelo gás zyklon B, gritam e se
debatem.
Quando o silêncio reina dentro da sala de banho, os
corpos devem ser recolhidos. Automáticos, os Sonderkomando entram e arrastam os
mortos. Essas cenas estão desfocadas e se tem a impressão de que eles trabalham
num açougue gigantesco. Um barulho chama a atenção dos homens. Um jovem
adolescente sobrevivera. Arqueja. Algo desperta Saul de seu torpor. Ele toma o corpo
até uma enfermaria. Um oficial médico alemão avalia com o estetoscópio. O médico
judeu diz: está vivo. O alemão apenas põe sua mão firmemente sobre a boca e o
nariz do rapaz, sufocando-o. Limpa a mão com um lenço e ordena ao médico judeu
que realize uma autópsia e devolva o corpo para o crematório. Saul assiste a
tudo isso e pela primeira vez fala. Doutor, não corte o garoto. O médico se
nega. Pergunta se era parente. Saul diz que era seu filho. Esta questão ficará
mais ou menos clara ao longo do filme. Deixo que descubram.
Saul usará todos os seus precários recursos para
realizar o enterro segundo a tradição judaica. Parece que esse ato singelo em
meio à carnificina, ajudaria a dar sentido à sua existência no torvelinho
daquela monstruosidade. Ele carrega sua solidão e desamparo, luta contra um
meio cruel e insensível à sua vontade. Parece que todos sucumbiram e não
conseguem entender a sua obstinação. É tão poderoso este movimento dentro de
Saul, que ele pouco se importa com a fuga do Campo.
Ele vagará de um lado para o outro, consumido
pela determinação de fazer o enterro. Está disposto a correr todos os riscos.
Nem tem mais sua vida em conta. Era isso ou se tornar um zumbi embrutecido como
seus companheiros. Talvez essa leitura de um momento histórico tão tenebroso
reflita nossa dura realidade. Estamos emparedados pelas muitas exigências de ser
e de pensar? O
que faz sentido? Por quais coisas vale a pena lutar em total entrega? Qual o
nível de controle de nossos destinos? O que determina nossas motivações?
Estamos cercados de corpos mortos, pessoas para quem somos totalmente
indiferentes, e nossos companheiros (vivos) são apenas autômatos como nós
mesmos?
O filme pode ter muitas
leituras. Assisti-lo é submeter-se a duas horas de sentimentos e sensações
angustiantes que nos levam a questionar não só aqueles que perpetraram algo tão
assombrosamente maligno, mas nosso próprio momento histórico. Estamos em outros
(mais sutis) campos de concentração? Exagero?
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