O velho
quitandeiro criou um gato desde filhote. À noite, por razões obscuras, ele
amarrava o gato ao pé da mesa do pequeno comércio e se ia para casa. Na manhã
seguinte, ele desamarrava o bicho que estava livre para fazer suas gatices.
Passados alguns poucos anos, o gato adulto, toda noite a certa hora lá de seu
ciclo circadiano felino, miava desesperadamente. Só se aquietava depois que era
amarrado ao pé da mesa. O gato estava definitivamente condicionado.
Cada pessoa,
em certo grau, tem algum tipo de condicionamento. É comum que eles apareçam nas
relações sociais. Há gente, por exemplo, que só funciona no conflito, na
oposição. Há uma necessidade visceral de um “inimigo” ou alguém a quem culpar
ou brigar. Retire-se esse opositor imaginário ou real e esta pessoa fará de
tudo para achar outro.
Talvez o mundo
político seja o lugar perfeito para se ver este tipo de comportamento. Em
grande parte, é um teatro. Não raro, vemos um oposicionista esbravejando na
tribuna e logo em seguida confraterniza alegremente com seu adversário. De modo
que os passionais legítimos são poucos.
E no espectro
político, como nos campos de futebol, na arte, quanto mais exagerado e teatral,
mais a pessoa se destaca. Alguém duvida que as falas de um Bolsonaro ou de uma
Maria do Rosário, ambos em polos opostos, por mais absurdas que sejam e que até
firam nossas suscetibilidades, não tem um público ouvinte e aprovador de suas
loucuras?
Episódio não
tão recente entre esses dois ganhou novo round. Bolsonaro tornou-se réu num
processo no STF por injúria – chamou a Maria do Rosário de feia – e apologia ao
crime – teria dito que ela não merecia ser estuprada. O jurídico foi antecedido
por uma refrega entre os dois, em que a deputada chamou seu colega de
estuprador. Por truculenta que seja essa fala do deputado, admitir que o homem
é um estuprador pedindo para acontecer parece um descabimento.
Toda essa
querela seria apenas briga de ponta de rua, coisa de gente desclassificada, mas
o sururu entre ambos tem um propósito. Cada qual representa para seu público um
papel que pensam em suas cabeças vazias ser o ápice da defesa dos valores
defendidos por cada um.
Ao ser
indagada sobre o Supremo ter aceitado sua denúncia, Rosário cantou vitória e
disse alguma coisa sobre o combate à “cultura do estupro”. Ora, essa é mais uma
construção ideológica que, não avaliada como deve, leva a crer que estamos mais
para uma Índia do que imaginamos. O Supremo quer tirar uma lasquinha do tema da
moda. O único sensato neste imbróglio foi Marco Aurélio Melo que viu a cena
real, a fala do deputado não passou de um “arroubo retórico”, como disse.
Afinal, onde
está a cultura do estupro? Está no sentido que lhes dão um crescente e
fortalecido movimento feminista e da esquerda desmiolada que mistura na mesma
frase o “fora Temer” com o “corpo é meu”. Este movimento passou da fase de
mostrar os seios com a FEMEM, para ser mais aguerrido com passeatas e falas,
pode-se dizer, mais articulado, mas nem por isso diz a verdade e, desconfio, é
intelectualmente desonesto.
Cultura
pressupõe um conjunto de valores firmemente estabelecido, seguido pela imensa
maioria das pessoas, caracteriza comportamentos, tem status de verdade, faz
parte natural das disposições mentais e é cultuado como fundamento
identificador de um grupo. Tem outras acepções, quando se refere à área
artística, por exemplo.
A expressão
“cultura de estupro” é, no mínimo, um exagero e um desrespeito aos milhões de
homens que neste país nem de longe admitem tal comportamento. Quem pratica o
estupro não faz apologia dele. Não publicamente. Tem um viés marginal-patológico.
Até entre bandidos, há uma lei não escrita contra o estupro. Todos sabem o que
acontece ao estuprador na cadeia. As próprias autoridades tendem a dar
tratamento diferenciado ao criminoso para evitar que seja seviciado e/ou morto
pelos demais detentos.
Nestes dias,
há uma histeria que generaliza quase todo ato masculino como uma potencial
indicação para perpetrar o estupro. Um assobio na rua, uma abordagem de um
homem é, para alguns, indicação real da tal cultura. Ser masculino e viril está
se tornando um crime. O politicamente correto que se refestela neste absurdo,
aplaude.
Este
discurso vociferado em rostos pintados e ocupações de escolas, universidades,
ruas e órgãos públicos, fala de uma realidade da força, da agressão aos valores
dos outros, do impingimento de rótulos – veja-se o “coxinha” para denegrir
todos os que se opunham à bandalheira na política – como forma de desqualificar
e desconstruir o outro. O estupro existe e deve ser combatido na forma da lei e
com todo o rigor possível, mas não existe uma “cultura de estupro” no Brasil. A
expressão serve a um grupo que se recusa a analisar as coisas em sua verdadeira
realidade. É só um gato do quitandeiro, sem a honestidade daquele.
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