Hélio Schwartsman é
jornalista da Folha. É ateu. Diferente dos demais jornalistas que tem temas
específicos, Hélio fala de quase tudo. Da política à ciência. Não que isso seja
um problema, constato um fato. Houve um tempo em que Hélio escrevia muito sobre
sua opção não religiosa e, claro, desancava – com alguma habilidade, diria – os
religiosos e as religiões. Já chegou a se gabar de seu ateísmo na criação dos
filhos.
Ultimamente o tema
religioso estava meio esquecido pelo articulista. Ocupava-se de coisas mais
mundanas que, aparentemente, pareciam mais urgentes para suas elucubrações. Mas
bastou o Nepal estremecer sacudido por um baita terremoto e o ateu despertou.
Nada contra qualquer ateu. Uns creem e outros não. O problema é quando o ateu
no Hélio resolve parolar argumentos que, supostamente, colocam Deus numa sinuca
de bico. Parece Cecília Meireles: ou isto ou aquilo.
Em seu artigo “Flagelo
de Deus” (28/04/2015), título já, por si, arrogante e pretensioso, questiona: “Bastam alguns segundos de movimentação
das placas tectônicas para produzir doses avassaladoras de sofrimento humano.
Como conciliar isso com a ideia de um Deus que é, ao mesmo tempo, onisciente,
onipotente e benevolente?” O finado Rubem Alves, que era um agnóstico com
pitada de um tipo de fé mística, fez pergunta parecida quando do desastre das
cidades serranas do Rio. Perguntou onde estava Deus, parafraseando pergunta
semelhante dos judeus ante o horror do Holocausto. Neste quesito, Rubem que
fora teólogo em tempos longínquos, havia perdido seu referencial de
transcendência há muito. Pelo menos aquele que se refere ao “Totalmente outro”
segundo Karl Barth.
O ateu tem um baita problema quando argumenta
contra a religião, ainda que muitas de suas críticas sejam corretas. Basta ler
Richard Dawkins e Christopher Hitchens, para ficar em dois famosos recentes que se
notabilizaram por uma aguerrida militância anti-Deus. O problema o limita sobremaneira, daí
que seus argumentos são, quase sempre, irrelevantes para atingir a fé.
Ora, se quero discutir ciência, valho-me dos
princípios científicos que o regem. Se quero discutir aspectos técnicos do
futebol, devo me ater às regras que o definem. Mas o ateu quer discutir Deus e
suas ações ou inércia fora da teologia. E olha que não nos faltam teólogos
ateus. Daí que a pergunta sobre a onisciência, onipotência e benevolência
divinas, no caso do terremoto e de tantos outros desastres, não faz sentido. As
qualificações de Deus nada têm que ver com o desastre. Não se confunde com o
sofrimento humano, porque, no mínimo, temos que considerar duas coisas aqui: a
causa do mal e o do sofrimento decorrente; a capacidade humana de fazer
escolhas. Há uma resposta teológica para isso. Teologia não significa fé cega.
Há lógica e sentido, mas deve-se considerar os pressupostos da Revelação como
ponto de partida ou de chegada, concordando-se ou não.
É um terremoto, que
culpa tem aquelas pessoas que morreram ou perderam tudo? Nenhuma, do ponto de
vista de serem mais merecedoras de tal destino trágico. Jesus foi questionado
certa vez sobre uns galileus que morreram porque uma torre caiu sobre eles
(Lucas 13. 1-5). As pessoas entendiam que eles ou eram azarados ou muito mais
pecadores que os demais, pois em pleno sacrifício sofreram uma morte horrível.
Jesus nega este raciocínio sobre merecimento ou culpa. Todos estão em igual
condição. Faz parte da vida. Acidentes acontecem, terremotos acontecem. Pessoas
sofrem. São dados da realidade deste mundo. Não estamos simplesmente condenados
fatalisticamente. Coisas boas também acontecem. O próprio desastre nepalês
revela um sem número de pessoas que se mobilizaram para ajudar àqueles em
sofrimento.
Hélio prossegue: “Se nos aferrarmos à lógica, é forçoso concluir
que, se há um ente supremo, ele é menos poderoso do que se apregoa, ou não é
tão bonzinho, ou então devemos negar (ou relativizar) a existência do mal.” Ou
Deus é bom e nada de ruim pode acontecer neste planeta, ou Deus está alheio e
indiferente, ou Deus não é poderoso. Isso é um sofisma. Não há a lógica à qual
está preso o argumentador. Exceto em sua cabeça. Erra em misturar Deus e a vida
na terra num panteísmo chifrim. Erra em supor o que Deus deve ou não fazer.
Confunde o mal acontecimento desastroso com o mal ontogênico, um ser mal, o
diabo ou o que seja que explique os desmantelos do mundo.
Novamente usa pressupostos teológicos, sobre os
quais, parece, não entende, mas ignora e rejeita suas explicações. Deus criou o
mundo bom. Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias, diz o
sábio em Eclesiastes (7.29). Este sábio compreende que Deus fez o dia bom e o
dia mal. Conclui, talvez desolado: “Tudo isto vi nos dias da minha vaidade: há justo que
perece na sua justiça, e há perverso que prolonga os seus dias na sua
perversidade.” (vers 15) Há um sem sentido na vida que é parte da nossa
condição e que temos que bancar.
Então,
num lampejo de bom senso, Hélio até diz: “Ao contrário de Deus, nós não temos todas as informações e é possível
que o que nos pareça um mal ou uma injustiça seja, na verdade, um meio para
produzir um bem maior.” Embora sinta alguma ironia na sua fala, ele caminha com
o sábio de Eclesiastes neste momento, embora desande logo em seguida.
Chama de teodicéia escatológica o argumento que fez
a festa na boca dos comunistas e, depois deles, na teologia da libertação no
sentido de deplorar a fé, esclareço. No final, o mal será punido e os bons
serão premiados. Não sei se é tão simples assim. Afinal, dizem os ateus, isso é
o grande engodo da religião para usar sua faceta dominadora, se não enganadora.
Esse reducionismo está longe da complexidade e sofisticação da justiça divina,
até porque há, sim, alguma justiça ainda aqui.
Por fim, Hélio provoca os religiosos. Ora, se no
outro mundo é tão bom – refere-se, quero crer, aos cristãos, pois os muçulmanos
fanáticos morrem aos montes na expectativa do paraíso com as 72 virgens e tal –
os crentes não parecem tão ansiosos por esta próxima vida, cutuca. Que eles não
demonstram apetite especial pela morte, enfatiza. E antão se torna palpiteiro.
Ele suspeita que a ilusão da religião afeta apenas a parte mais recente do
cérebro evoluído, aquela primitiva, reptiliana, essa carregada de instintos
básicos de sobrevivência, esta imune às “viagens” da religião.
Hélio é coerente até o fim.
Uma vez agarrado a seu raciocínio, termina como um abraço de afogado. Não o
culpo. Coerência é algo que tem valor, mesmo quando nos leva a conclusões
equivocadas. É claro que o jornalista pode falar o que quiser, mesmo que beire
a desonestidade intelectual quando trata a questão de forma tão superficial e
em recusa de considerar que outros dados estão envolvidos. Uma pessoa de fé não
é leviana se não anseia pela morte. Não trai sua crença se ama a vida que tem
aqui, mesmo neste vale de lágrimas. A vida eterna de que fala Jesus, começa
aqui. Paulo diz em certa ocasião: “Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer
é ganho. Mas, se o viver na carne me der fruto da minha obra, não sei então o
que deva escolher. Mas de ambos os lados estou em aperto, tendo desejo de
partir, e estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor. Mas julgo mais
necessário, por amor de vós, ficar na carne. E, tendo esta confiança, sei que
ficarei, e permanecerei com todos vós para proveito vosso e gozo da fé...”
(Filipenses 1.21-25)
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