segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Deusa



RIO – Acusada de tentar matar envenenada a patroa, a empregada doméstica Deusamar de Jesus Lima Rodrigues foi presa nesta sexta-feira, 14, no aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador (zona norte do Rio). A prisão preventiva dela foi decretada sob acusação de ter envenenado a patroa, Sheila Gama, filiada ao PDT, ex-deputada estadual e ex-prefeita de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Fonte: Fábio Grellet - O Estado de S. Paulo (14/11/2014)

Sem navegação em hipertexto, aquela notícia era estranha. Ela sozinha, foi assim que me deparei, era troncha. Lá pelo meio trazia um link que, lido, acrescentava pouco ao caso. Podia-se ver “o quê”, o “como”, o “quando” e o “onde”, mas o “porquê” não estava lá. Ao ler, ficava o incômodo como coceira de bicho de pé. Por que o animus necandi de Deusamar?
Aí só já havia uma contradição fundamental. Então como explicar que alguém que carregue o nome Deus e o verbo amar fosse capaz de usar método insidioso e cruel para assassinar sua patroa? Sim, a suposta assassina, possivelmente chamada de Deusa entre os íntimos, usara do ardil de substituir o conteúdo da cápsula medicamentosa por chumbinho, popular veneno destinado a matar ratos.
Convenhamos, o ódio cevado sabe-se de que forma e por quanto tempo, deu a Deusamar não só a criativa ideia, mas a paciência nefasta dos vingativos que, como se diz, comem pratos frios. Acrescente-se a meticulosidade do artifício. É de se imaginar Deusa espremendo os olhos para enxergar as bolinhas diminutas, a retirada cuidadosa do conteúdo da cápsula. Com alguma licença poética, pode-se ver Deusa com um monóculo daqueles usados por relojoeiros em total absorção em seu ofício fatal.
De repente, a dúvida. Quantas bolinhas seriam necessárias para dar cabo da mulher odiada? Decidiu-se, enfim, por quantas coubessem no recipiente. Faltava-lhe a sutileza e a arte de um serial killer daqueles filmes de suspense. A delicadeza deu-se num único momento. À hora certa, levou um copo d’água na pequena bandeja com a cápsula envenenada com o rodenticida.
Era um momento eletrizante. Havia excitação e medo. Havia ódio puro, associado à satisfação de um desejo que agora era realizado. Havia dúvida se o plano funcionaria. A dosagem seria suficiente? Ela nunca pensara no depois. Estava tomada de um frenesi homicida, não havia depois, apenas o êxtase de dar cabo de seu objeto de ódio. Pensara na fuga, voltaria à sua terra e para isso comprara passagem antecipadamente, mas era uma fuga tosca para o Maranhão, seu torrão, sua paixão, que a expulsara madrastamente para outros mundos em busca de dias melhores. Agora era como uma mãe que lhe acolheria do castigo certo.
Terminado o ato, tratou sua patroa com peculiar decência, fez ligeira reverência e retirou-se. Ela se permitiu um último deboche. Um leve tripudiar sobre o que considerava injustiças sofridas. Naquele instante, ela se sentia imensamente poderosa. Tinha um segredo mortal, passara a linha limite que mantém a sociedade ligeiramente em equilíbrio, antes de sucumbir ao estado de natureza. Só ela sabia e isso a fazia se sentir única. Segue-se a este clímax a internação da patroa, a descoberta de tudo. Sua fuga assinou sua culpa e a prisão no aeroporto. Presa, ela apenas confessou que, sim, envenenara a mulher. Eis tudo.
Eu, todos os leitores, ficaríamos nos contorcendo, em suspense a perguntar: Por quê? A notícia calava. Deusa calou. A mulher moribunda nada disse. A polícia nada sabia. Os leitores desamparados criaram fóruns para sugerir razões. Numa rede social, nasceu a página ensandecida: “Deusa, a redentora”. Isto porque se descobriu que a vítima fora prefeita, deputada, em suma, fora política. Deusa encarnava a libertação, a revolução contra os políticos corruptos. Seu lema era: domésticas do Brasil, uni-vos. Políticos, tremei!

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