domingo, 31 de agosto de 2014

Nós não somos nada



Uma família divide mais do que a mesa de refeições — ela divide também as mesmas bactérias. Esses micro-organismos, únicos e identificáveis, estão espalhados pela casa das pessoas e "viajam" com elas para outros endereços. Essas foram algumas das revelações de um estudo publicado nesta quinta-feira na revista Science, que analisou os trilhões de bactérias que habitam casas e apartamentos.

Fonte: Revista Veja (28/08/2014)

Depois do projeto genoma e tantas outras pesquisas, a ciência concluiu que nós somos só dez por cento humanos. Significa dizer que, para cada célula do nosso corpo, tem dez bichos esquisitos agarrados à pele, cabelos, intestinos e tudo mais que você imaginar. Isso faz um pensar. A ciência chega a dizer que somos um superorganismo composto de mais ou menos um quilo de bactérias, algo em torno de cem trilhões de microscópicos indivíduos!
Parece que dizer eu singularmente ou a mera pretensão de individualidade é algo definitivamente impossível. As bactérias – se falarmos apenas nelas – participam da digestão à renovação da pele. Dizem que elas são fator fundamental no equilíbrio da saúde, influenciam o sistema imunológico e há quem sugira que da obesidade ao diabetes, eis as bactérias agindo como culpadas ou até na cura destes problemas.
É muita informação para digerir. Haja bactéria! Suspeito que elas, velhas como são e mais espertas nas artimanhas da evolução, nos manipulam com pensamentos e hábitos para seu próprio deleite. Sei que é complicado imaginar isso, mas à medida que os microscópios devassam este mundinho escondido, mais se sabe o quanto elas, sonsas que são, fazem o que querem conosco. Sem contar que, uma comunidade que se chame de José, por exemplo, ao se deparar com outra comunidade chamada do que for, provoca uma guerra fratricida – entre bactérias, pois não? – que resulta, não raro, em doenças na pobre entidade José, às vezes, com diarreias devastadoras.
Imagino as implicações no campo das ciências sociais: sociologia, antropologia e suas primas outras. Um aparente sujeito – palavra que deverá ser modificada para uma pluralidade eterna a partir de agora, a se considerar a população homem-bactéria – precisará ser visto em suas diversidades, quase um universo a ser desvendado e estudado. Cada dito ser humano se torna agora praticamente uma civilização perdida na floresta de gentes. Verdadeira tribo desconhecida a lançar flechas no primeiro microscópio que lhe apontar a lente.
Seria muito engraçado ver a cara de racistas e eugenistas em geral. São um amontoado de bactérias como quaisquer outros. As deles, seres pervertidos, malévolas criaturinhas com pretensões de pureza, mas nadando no mesmo caldo gosmento que nos pariu. Donde veio, portanto, sua besta pretensão? As pesquisas não explicam, mas digo aqui. Bactérias drogadas, bêbadas. Fizeram uma viagem lisérgica e nunca mais voltaram.
Recentemente cientistas bisbilhoteiros descobriram que as bactérias são compartilhadas em família. Aquilo que ainda se chama assim. Pais e filhos, cachorros, gatos e papagaios trocam bactérias entre si, transformando-se numa pequena Babel destes bichinhos a conviver em saudável alegria. A casa em que vivem fica empesteada. Eis a descoberta maior do estudo: se a tal, vá lá, família se muda para outra casa, em poucas semanas as bactérias colonizam o novo ambiente. É como se as coisas mais banais como seu celular, fossem se bacterializando como você. 
As bactérias vão no caminhão de mudança, de mala e cuia, e deixam um rastro de marcas biológicas com registros inequívocos de sua passagem e, horror dos horrores, com traços de seu dna enganchados nelas. É lógico supor que imediatamente se descobriu fins investigatórios detetivescos nessa descoberta. Muminhas diminutas ou esqueletinhos arqueológicos destas ficam no caminho ou nos endereços por onde se passou e dali se pode dizer – como o faziam os peles vermelhas cheirando o ar, colocando o ouvido no chão – quem, quando e quanto tempo viveu no tal local.
As mãos das pessoas são o veículo de compartilhamento das bactérias familiares. Fala-se, por dedução daquela lógica forense, de uma nova impressão digital. Suas bactérias são você ou o que você pensa que é... literalmente. Além da parecença genética, nosso parentesco familiar pode ser visto na palma da mão. O único lugar onde você pode saber que você é você e não um amontoado de bactérias compartilhadas é no nariz. Os pesquisadores cutucaram o nariz – espero que não publicamente – e ali se viu escondidas bactérias que sugerem uma individualidade. Então você já sabe, sua decantada unicidade como ser está dentro de seu nariz.

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