domingo, 13 de outubro de 2013

Antes morto do que vivo



Um americano declarado morto depois de ter desaparecido há quase trinta anos reapareceu e agora não pode ser declarado oficialmente vivo, mesmo tendo voltado para casa e estar em boa saúde.

Fonte: BBC Brasil (11/10/2013)

Excelência meritíssimo. Venho por meio desta solicitar minha reabilitação ao estado de vivo. Parece estranho, eu sei. Mas não se aperreie que explico. Como um defunto pode escrever? No seu lugar, eu também ficaria pasmo. Ora, se de próprio punho requeiro minha habilitação, logo, estou vivo. Acontece que descobri que estou morto de uma maneira prosaica. Ao tentar tirar minha carteira de motorista, fui surpreendido com a notícia. O espanto foi grande. Mas o atendente teimou em dizer que constava no arquivo do Estado que eu morrera lá pela década de 80, do século passado, sim, senhor.
Argumentei, botei a língua pra fora que nem a Miley Cirus, pulei e arregalei os olhos, mas o indivíduo do atendimento sequer se mexeu na cadeira. Até dancei a dança do quadrado, nada. Saber-se morto é uma novidade estupefaciente. Mas há uma explicação. Naquela época, estava cheio de tudo. O casamento ia mal. O emprego era uma porcaria e devia muito. Era um inferno a quantidade de cobradores no meu rastro. Por fim, fui despedido do emprego fuleiro e aí ficou pior. Disse à mulher que ia comprar cigarro e nunca mais voltei. Não sabia, neste Estado, sumido há mais de três anos, declara-se o tal morto, com corpo ou sem corpo. Um disparate. Assim que solicito que V. Excelência me declare vivo de novo, pois estar morto tem-me dado um trabalhão. Como os zumbis estão na moda, pensei em ganhar algum, mas está difícil. Dizem que não tenho perfil, pois apesar de morto, pareço muito saudável. Certo de sua compreensão saiba que, de novo vivo, serei eternamente grato.
Prezado requerente. Leio com estupor sua história. Até pedi ajuda a uma necromante para atestar que sua carta era verídica e me foi garantida a autenticidade. Assim que, menos ressabiado, passo a relatar o seguinte. Como bem mencionou, nosso Estado tem lei sobre esta situação. Você está legalmente morto. Entenda. O Estado não se imiscui no fato real de você estar vivo, como percebo que está. Mas você atende a um requisito legal: sumiu por mais de três anos sem deixar vestígios e nem ao menos uma mensagem, ainda que fosse psicografada. Ajudaria agora. Uma vez morto no sentido legal assemelha-se à morte física, não tem remédio jurídico. Não posso revogar seu estado cadavérico, embora  vivo. Ademais, sua morte produziu efeitos. A viuvez de sua senhora, por exemplo, que, nesse estado, aproveitou a vida. Sua ressurreição colocaria a pobre e sofrida mulher na condição adulterina e o senhor... bem, o senhor deve imaginar.
Digo mais. Sua esposa viúva pediu ao Estado pensão para os rebentos deixados órfãos, o que foi pago rigorosamente por anos. Redivivo, sua mulher teria incorrido num estelionato previdenciário com consequências econômicas – teria que devolver o dinheiro auferido – e até cadeia. Suas dívidas, até onde sei, foram canceladas, pois como se pode compreender, morto não paga dívidas. Seu caso é inusitado. Admira-me que o senhor não tenha sido notificado de sua morte, pois nosso Estado é zeloso destas coisas. Lamento. Sugiro que recorra à alta corte no prazo improrrogável de 30 dias. 
Prezado Meritíssimo. Represento a viúva nesta querela judicial com ares metafísicos. Comunico-lhe que a senhora em tela ficou deveras satisfeita com sua decisão. Reitera que não guarda rancor do morto, mas fazê-lo voltar à vida acarretaria um pedido de divórcio, dívida com o Estado, além de se tornar falada na cidade. A condição atual do marido finado é, sem dúvida, mais conveniente a todos, inclusive ao próprio. Saudações.

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