A maioria das relações funciona dentro de um processo de antecipação de ações, resultado de uma espécie de jogo de adivinhação que cada um de nós pratica em relação ao outro. Não há, por evidente, nada de errado quando estas atitudes são fruto da experiência de vida. Afinal, é para isso que serve o aprendizado. Se sei que eventos específicos, antes vividos em circunstâncias parecidas, tem um desfecho prejudicial para mim, antecipo-me e ajo de modo a contornar a situação ou tomo medidas que garantam, ainda que de forma mínima, um final menos danoso.
Do mesmo modo, nas relações pessoais, é prudente e necessário no trato com algumas pessoas - quando se sabe que aquele indivíduo – não de forma determinista, pois as pessoas podem mudar – costuma agir de forma conhecida –, evitar um tipo de contato como forma de proteção ou mantê-lo num nível asséptico.
Até aqui, o que vale para estas manobras é a experiência de vida, o conhecimento. Entretanto, estas mesmas ações evitativas podem ser resultantes de um ativo sistema de defesa, montado com tranqueiras de experiências dolorosas no passado, especialmente quando se trata de decepções em relações pessoais. As novas ou antigas relações são determinadas, neste caso, pela permanente desconfiança. O intuito de quem age assim é uma proteção emocional, é o medo de ser machucado. A cada nova vivência relacional, é acionado um sistema de alarme que se baseia, a esta altura, em aparência. Dezenas de pequenos julgamentos que vão do modo de falar a um inofensivo tique que o novo conhecido apresente.
Cada um destes itens são “provas” irrefutáveis de que aquela pessoa não deve ser lá de muita confiança, portanto, é preciso estar sempre alerta para que a cada suposição perpetrada na mente do desconfiado, uma atidude protetora seja realizada.
E como isso acontece? Primeiro, onde acontece. Em todas as relações, quer se tenha intimidade ou não. O dano, entretanto, sempre é maior entre aqueles que se conhecem. Entre estes há uma tendência a se antecipar a ação e contra atacar com atitudes que são no fundo, pequenas vinganças, provocações disfarçadas. Não deixa de ser arrogância imaginar que se sabe até mesmo o pensamento e intenções íntimas de alguém que se julga conhecer.
Aí estão os ditos e não ditos, as agressões “sem querer”, os equívocos “não deliberados”, as mesquinharias “protetoras” – todos golpes abaixo da cintura, para os quais sempre haverá uma desculpa bem intencionada. Quem erra ou sente culpa, tende mais a usar estes expedientes. Quem nunca ouviu, falou ou praticou: eu não disse ou fiz isto, mas já que a carapuça assentou... A intenção era esta mesmo, o outro mordeu a isca e antecipou-se, poupando trabalho da exposição daquele que perpetrou o ato ou a fala.
Agora, como isso acontece. Antes que seja cobrado, a pessoa mente. Antes que exponham a vergonha, ataca lembrando coisas do arco da velha e que normalmente, bem ou mal, foram equacionadas. Antes de pedir desculpa, relembra a última maldade do outro ou um bem que foi feito em seu favor. Antes que a pessoa fale de sua mágoa, atalha com um rosário de necessidades que não foram satisfeitas. No fundo, é a velha e sambada técnica de atacar em vez de se defender, mas, ironicamente é só um tipo de defesa. Pode funcionar na guerra, não nas relações.
Sobre as relações pessoais não é assim. A intimidade aqui é um elemento de desarme – quase sempre – de modo que quando se aprende a agir com este escudo antecipatório as ligas que uniam esta comunhão: afeto, respeito, cuidado, amizade, diálogo, já foram para o espaço há muito tempo ou estão danificadas em estado quase terminal.
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