quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Sobre “retiros culturais” e outros perigos


Em alguns lugares da cidade deparei-me com um outdoor curioso, entre os milhares que enquadram nossas vistas com propagandas do governo estadual. Para minha surpresa, o governo festejava o apoio a um carnaval, com pierrôs e colombinas de outro tipo. Sei que essa ironia não passará despercebida, mas peço um abre alas que eu quero passar.
A imprensa anuncia que 200 mil dinheiros foram investidos na Semana de “retiros culturais”, quase 500% superior ao ano passado – este é um ano eleitoral, lembrem disso. Cerca de 228 desses, digamos, “retiros” foram aquinhoados com a benesse, em 36 cidades. Os valores empregados em cada um foram erráticos, talvez baseados em algum ranking do valor das manifestações artísticas apresentadas. Uma pergunta incômoda me ocorre. Em vez de patrocinar a alienação e a ‘desimportância’, o que faria aquele valor atendendo quem realmente, neste miserável estado, tem fome e sede de justiça? Do jeito que está, tudo se acaba na quarta-feira, como disse Vinícius.
Uma lei estadual, aprovada em 2008 (lei nº 8.904), sustenta a legalidade do ato, mas se perguntarem no que isso beneficia a sociedade, nem à custa de muito malabarismo verbal se consegue justificar, exceto pelo interesse das castas políticas que querem agradar um grupo, que atende pelo nome genérico de “evangélicos”. A defesa da patrona da lei em favor do financiamento é fantasiosa e se apoia numa contrafação criada por ela mesma. Em suas palavras (Nov/2009): "Todos os anos a juventude evangélica se reúne numa manifestação artística e cultural, denominada retiro. O evento sempre fez parte das atividades do segmento evangélico, com a lei de nossa autoria aguardamos atenção especial por parte do Governo do Estado.” Recuso-me a comentar o discurso da deputada em out/2009, quando defendia sua lei e as comparações que fez, quando disse que jovens saem da prostituição e drogas, apenas por causa destes “retiros culturais”. Ei, você aí...!
Em todo caso, se me dissessem, há não mais que vinte anos, época em que realizar retiros era um desafio contra o entendimento geral, que dizia que no carnaval o fiel tinha duas opções: pregar a Palavra aos perdidos na folia de Momo ou ir à igreja, que não mudava sua rotina de cultos nem sob fogo cerrado dos blocos da Madre Deus à sua porta. Pois bem, eu não acreditaria. Já se vê que não tenho tino para profeta.
A mudança foi rápida e inexorável. O que a explica? Não foi certamente uma mudança teológica, esta, aparentemente, continua intacta, embora cada vez mais sem qualquer diálogo com a realidade, no caso da principal igreja beneficiada. Temos aqui algo mais escatológico. As águas vão rolar...
Que mal haveria a igreja receber dinheiro público para financiar seus “retiros culturais”? Desde que fosse uma iniciativa que recebesse ampla publicidade, para toda e qualquer igreja, com critérios claros – não aqueles regrados por acordos políticos ou leis fajutas – objetivos e resultados e prestação de contas do gastado. Tudo bem? Não. Ainda aí haveria um conflito insanável que os patrocinadores da invenção não querem nem de longe falar, pois para estes, no raso mesmo, se trata tão somente de estratégia política para alcançar objetivos eleitorais, é nisso que tudo se resume, ou alguém acha que andar em procissão com a governadora nos “retiros culturais” era um tipo de zelo para ver se o dinheiro estava bem empregado? Se vocês fossem sinceros...
Receber dinheiro público, no fim das contas, é o de menos. Será que ele é? O que está em curso, sem que haja qualquer resistência, é o aparelhamento da igreja, sem a menor cerimônia, para fins políticos. Desde que as igrejas, de modo geral, entraram na política, isso sempre aconteceu. Sempre foi vergonhoso, mas a coisa se limitava à imposição de candidatos e pedidos de voto no púlpito. Os tais “retiros culturais” são um passo adiante. Manipula-se, distorce-se e impõem-se uma particular compreensão – se quiserem entender assim – sobre uma atividade simples e comum da igreja, que sempre teve o propósito de descanso, estudo da Bíblia, oração, enfim, renovação espiritual, onde cabe, sim, brincadeiras, cânticos, até pequenas apresentações, mas que nunca pretenderam ser expressão artística de coisa nenhuma. Era e é lazer e ponto. O que se faz aqui é vestir a igreja com uma casca de banana nanica, como o fez a Chiquita Bacana lá da Martinica.
Qual será o próximo passo nesta escalada? Cultos temáticos como já é comum, mas com o objetivo de doutrinar sobre partidos e candidatos? Círculos culturais de oração? Quem será o patrono religioso destas empreitadas? Daniel? Sugiro Roboão, mas desconfio que não será aceito.
Nestes tempos sombrios, tempos de “mamãe eu quero mamar”, em que os políticos protagonizam os piores escândalos, roubam, mentem, desviam milhões, fazem negócios sujos à luz do dia – o Maranhão não está isento desta mazela, como se sabe muito bem – à igreja caberia ser uma espécie de reserva moral, a defensora da ética na mais perfeita acepção da palavra, não porque os pastores e líderes não erram, mas porque seriam homens e mulheres, apesar de si mesmos, comprometidos com o que há de mais sublime em termos de aspiração humana, serem imitadores de Cristo. Se a canoa não virar...
Enquanto a igreja se encantar e deslumbrar com um protagonismo político tolo e inconsequente – em termos sociais, para ela haverá consequências funestas -, permitir que políticos dela ou de fora se imiscuam em seus negócios ou ela se introduza nas coisas mundanas em sua mais feia aparência, é de se perguntar se este não é um caminho para a mais absoluta irrelevância, filha da mornidão. Cuidado para que não se veja muito riso, muita alegria e, na igreja, mais de mil políticos no salão.

Viemos do Egito
E muitas vezes
Nós tivemos que rezar
Allah! allah! allah, meu bom allah! Alalaôôôôô

Um comentário:

ricardocontraponto@gmail.com disse...

Belo texto, adorei!